Primeiro
dever do historiador é fugir da armadilha do anacronismo
Na
Califórnia, o Conselho de Educação de São Francisco mudou os nomes de 44
escolas, varrendo figuras racistas do passado e, de passagem, também Abraham
Lincoln. Na Folha (19/1), Marcelo
Coelho reativou a campanha pelo cancelamento de Monteiro Lobato,
rotulando-o como um “racista delirante”. Ezra Klein tem razão ao concluir que,
por essas vias, transforma-se a política mais em estética que em programa
(Folha, 12/2).
Cada
geração tende a reinventar a história à sua imagem, atribuindo aos personagens
do passado as virtudes ou pecados que tocam nas sensibilidades do presente. O
Lincoln oficial é Grande Emancipador; o dos dirigentes escolares de São
Francisco é o político que se opunha tenazmente ao exercício do sufrágio pelos
negros. Depois de cancelar os líderes da Confederação, a esquerda identitária
americana precisa seguir adiante, condenando ao opróbrio todos os que não
abraçam seus valores. O primeiro dever do historiador é fugir da armadilha do
anacronismo, inscrevendo os personagens que estuda na moldura de sua própria
época. Mas o anacronismo constitui a ferramenta imprescindível dos emissários
da atual política simbólica.
Lincoln
simplesmente compartilhava as ideias predominantes no seu tempo. Lobato
debatia-se com as encruzilhadas reais ou imaginárias da metade inicial do
século 20. O método de pinçar frases racistas em suas obras ou cartas
pessoais serve, exclusivamente, para obter aplausos da plateia cúmplice que
milita no identitarismo acadêmico.
Que
tal democratizar o anacronismo? Eu acuso W.E.B. Du Bois, “pai fundador” do
movimento negro americano, de nutrir certas simpatias pelo nazismo. Acuso
Abdias do Nascimento, prócer do moderno movimento negro brasileiro, de propagar
as ideias fascistas da Ação Integralista Brasileira. E acuso milhares de negros
do Brasil do século 19 de terem sido proprietários de escravos. Minhas cápsulas
de verdades fora de contexto, artimanhas no palco do ilusionismo, esclarecem
tanto quanto a sentença inquisitorial lançada contra Lobato.
As musas da Sorbonne costumavam soprar nos ouvidos dos intelectuais brasileiros. Não mais. Hoje, os cavaleiros andantes da política identitária seguem gurus americanos –e querem que o Brasil seja os EUA. O problema é que, quando se trata de nação e raças, a América Latina tomou rumo diferente.
Enquanto
os EUA praticavam a segregação racial oficial, o mexicano José Vasconcelos
(1882-1959) e o brasileiro Gilberto Freyre (1900-1987) enalteciam a miscigenação.
Lobato não adotou nenhum dos dois polos, ensaiando um raciocínio inclinado à
conciliação de raças. Os três, porém, pisavam um chão ladrilhado por conceitos
raciais que só seriam superados na metade final do século 20. A acusação a
Lobato nada diz sobre o escritor, mas pinta um retrato preciso de seus
acusadores.
A
crítica literária Ana Lúcia Brandão recolocou o debate sobre Lobato no seu
devido lugar (Folha, 15/2), descortinando amplos horizontes para divergências
civilizadas. Vã esperança: Coelho retrucou comparando-a aos terraplanistas. Se
não rezam pela cartilha de Bolsonaro, são comunistas; se contestam o manual de
cancelamento da política identitária, serão terraplanistas. Vamos mal.
A
política estetizada ignora os dilemas que interessam às pessoas comuns. As
escolas de São Francisco permanecem fechadas –mas seus nomes foram devidamente
sanitizados. O Pisa revela que o ensino público brasileiro continua a sonegar o
direito à educação aos filhos de famílias de baixa renda de todas as cores –mas
temos cotas raciais nas universidades e cercaremos com bandeiras de alerta as
frases suspeitas de Lobato. São Paulo empurra seus pobres a periferias cada vez
mais distantes –mas logo removerá a Estátua do Empurra da entrada do
Ibirapuera.
A
estética nos consome: lancetamos símbolos. Sorte da direita populista.
*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.
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