Facilitar
o acesso a armas no Brasil é como jogar um fósforo aceso em chão de pólvora
“Em relação à carnificina que provocam, as
armas de uso individual podem ser comparadas às armas de destruição em massa”,
disse Kofi Annan,
ex-secretário-geral das Nações Unidas. A frase é de 2000. No ano seguinte,
a ONU realizou
em Nova York a Primeira Conferência Internacional sobre Armas de Fogo – o
Brasil do presidente Fernando
Henrique enviou uma das maiores delegações, com representantes
do governo e da sociedade civil. Se existe um consenso no planeta Terra – aquele
que é azul e, para espanto de alguns, redondo – é o que defende o controle das
armas de uso individual. Tal entendimento, baseado em evidências e estudos
acadêmicos, formou-se há mais de 20 anos. Da conferência de Nova York para cá
vários países criaram leis nessa direção.
O espírito de tais leis – incluindo a brasileira, alinhada ao consenso internacional – é impedir que as armas turbinem os homicídios ou caiam nas mãos do crime. Os vários decretos do presidente Jair Bolsonaro sobre o assunto, incluindo os que foram publicados na sexta-feira de carnaval, vão na contramão desse espírito. Eles emasculam o Exército e a Polícia Federal em seu poder de fiscalizar os armamentos. No limite, dificultam a investigação de crimes por parte das polícias, como mostra Michele dos Ramos, assessora especial do Instituto Igarapé e mestre em segurança internacional. Ela é a personagem do minipodcast da semana.
Os
que discordam do consenso – principalmente nos Estados Unidos – costumam
brandir o exemplo do Canadá, país com legislação liberal e criminalidade
baixíssima. No livro Armas para quê?, o professor Antônio Rangel Bandeira
– pós-graduado em Ciência Política justamente no Canadá – afirma, com base em
pesquisas, que a violência urbana é causada por pelo menos 40 variáveis. Elas
estão praticamente ausentes no Canadá, onde há bem-estar social, polícia
eficiente e alto grau de confiabilidade nos governantes. Em países como o
Brasil, com altos índices de pobreza e desigualdade, corrupção minando as
instituições policiais e desconfiança dos políticos, facilitar o acesso a armas
é como jogar um fósforo aceso em chão de pólvora.
O
Congresso brasileiro reflete o pensamento da maioria acadêmica. Os decretos de
Bolsonaro foram criticados pela esquerda (Marcelo Freixo,
do PSOL), pela centro-direita (Rodrigo Maia, do DEM), por
aliados de Bolsonaro (Marcelo Ramos,
do PL) e por alguns integrantes da bancada evangélica – que enfatizaram o
caráter “anti-humano e anticristão” da medida, nas palavras de Eliziane Gama,
senadora pelo Cidadania.
Em
editorial publicado na quarta-feira, o Estadão lembrou que o presidente
“já deu a entender que defende o uso desse armamento contra inimigos
políticos”. Na inesquecível reunião ministerial de abril de 2020, Bolsonaro
afirmou que, “se estivesse armado”, o povo “iria para a rua” em desobediência
às medidas de alguns governadores para combater a pandemia.
Na
semana da posse de Joe Biden (defensor,
aliás, do controle de armas), esta coluna listou medidas sensatas de diversos
governantes mundo afora – num indício de que a Terra, depois de um momento de
loucura, voltaria a ser redonda. Cabe ao Congresso colocar o Brasil na rotação
normal do planeta e gongar o faroeste caboclo. Se não fizer isso, continuaremos
a ser o país que – seja no combate à pandemia, seja no controle de armas –
ignora o conhecimento baseado em evidências. O país da Terra plana.
*Escritor, professor da Faap e doutorando em Ciência Política na Universidade de Lisboa
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