É
tudo muito diferente daquela vez quando a Câmara proibiu que um deputado fosse
processado pelo regime militar
A
história que se repete para nós não é uma farsa, tragédia, nem sequer uma rima
tem. Em 1968, o AI-5 foi decretado para
punir uma Câmara dos Deputados que impedira
que fosse processado um deputado que defendia liberdades cerceadas pelos
militares no poder. A atual Câmara dos Deputados – depois de uma
ditadura, uma redemocratização e uma Constituição – vai se ocupar da situação
de um deputado que usa das liberdades reconquistadas por gerações de
brasileiros para propor acabar com essas liberdades.
Do
ponto de vista do estado de direito e do funcionamento de suas instituições era
mais fácil então identificar onde estava o “bem” e o “mal”. Não, não é a
questão da “liberdade de expressão” consagrada na imunidade parlamentar: essa
proteção não é absoluta nem existe para a prática de delitos penais e o
incitamento do golpe e destruição da ordem democrática. O pano de fundo muito
mais preocupante é o da legitimidade das instituições envolvidas.
Começa pelo STF. Uma parte relevante da “insegurança jurídica” que caracteriza as relações na sociedade brasileira se deve à atuação política desse órgão. E do entendimento, entre seus integrantes, de qual seria o melhor efeito político ao tomarem decisões que fizeram da Constituição (que cabe ao STF zelar) uma questão de interpretação dependendo das circunstâncias do momento. Com ministros dando rasteiras em ministros.
Essa
noção (a da instabilidade causada por canetadas de magistrados), mais a
situação de caos social com a greve dos caminhoneiros, é o que estava na raiz
do “pronunciamiento” em 2018 do então comandante do Exército, general Villas Bôas. Na prática, o
coletivo do STF aceitou o que dizia o oficial. Naquele mesmo ano assumiu um
novo presidente da Corte e, num entendimento peculiar com o próprio general,
aceitou-se como um dos principais assessores do presidente do STF quem até ali
fora o chefe de Estado-Maior do Exército (e hoje é o ministro da Defesa). Tudo
em nome da pacificação e estabilização da atmosfera política.
A
franja aloprada do bolsonarismo, eleita com expressiva votação na onda
disruptiva daquele ano, dedicou-se desde sempre a atacar qualquer instituição
ou nome entendido como obstáculo ou adversário do “mito”, em boa parte
incentivada por ele mesmo. Para efeitos práticos, foi acompanhada por alguns
militares que, de fato, passaram a enxergar no STF um tolhimento
inconstitucional dos poderes do chefe do Executivo. Até ele entender-se
prazerosamente com o “Centrão”, esse velho conjunto de forças políticas em
parte conduzido por gente notória por colidir com a ética, a moral e o Código
Penal.
O Legislativo brasileiro, a quem
cabe a relevante decisão política sobre o deputado aloprado bolsonarista, vem
perdendo qualidade e sofre com extraordinária fragmentação. São resultados
muito evidentes de décadas de desgaste do sistema político. No topo desse
desgaste figura exatamente a questão da representatividade, ou seja, do
distanciamento entre quem elege e quem foi eleito – como ocorre com outros
fenômenos do populismo moderno (como Trump), há mais do que um grão de verdade
na denúncia que esses movimentos fazem “disso tudo que está aí”.
Em
1968, a decisão da Câmara de proibir que um deputado fosse processado pelo
regime militar foi um divisor de águas na nossa história política. Não é o que
se prenuncia agora, pois a palavra de ordem em Brasília é “acomodação”. Fora os
estridentes aloprados e suas redes sociais, não há forças relevantes dispostas
a partir para qualquer coisa remotamente parecida a um tudo ou nada. Os
militares se acomodaram no governo, que se acomodou com o Centrão, empenhado
desde sempre em acomodar seus interesses às custas dos cofres públicos, por sua
vez esticados ao limite para acomodar as visões antagônicas de garantir ajuda
emergencial e respeitar o teto de gastos.
Todos confortáveis com a ideia de que o próximo embate é só para 2022.
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