Não
entendo a vontade de comemorar o quer que seja quando há tanta gente asfixiada
nos hospitais, tanta gente morrendo
Não
sei mais sair de casa. Não é nem por medo — eu já tive Covid-19 e, em tese,
ainda estou relativamente imunizada contra o coronavírus. É que perdi a
habilidade.
Sair
envolve uma série de pequenos gestos e atenções. Não reparamos neles porque
sair é o nosso normal desde que o primeiro hominídeo se mudou para a primeira
caverna e, uma vez lá dentro, descobriu que a vida era lá fora.
Tudo
está lá fora: o comércio, a natureza, os amigos.
Mas
eu olho pela janela, vejo a vista mais deslumbrante do Rio de Janeiro e...
sinto zero vontade de ir até lá. Sair deixou de ser automático. Preciso me
concentrar na roupa e no sapato, preciso conferir se tudo o que preciso está na
bolsa.
Antes
eu sabia a minha bolsa de cor.
Antes
eu abria o armário, assoviava, e duas ou três blusas vinham comer na minha mão:
sempre as mesmas, apesar da quantidade de colegas. Hoje eu abro o armário, fico
pensando e desisto.
Antes
os meus pés encontravam as sandálias sozinhos, no escuro.
Já estive na rua algumas vezes desde o começo da pandemia, mas não consegui normalizar o mundo de máscaras, de álcool gel e de distanciamento social. Tenho uma dificuldade enorme de ficar alerta. Da última vez que saí, o elevador veio com dois vizinhos do andar de cima e eu já ia entrando. Fui à dentista, precisei calçar coberturas protetoras sobre os sapatos e só me lembrei que estava com aqueles paninhos nos pés dois quarteirões antes de chegar em casa, a própria louca do EPI.
Tenho
a sorte de poder trabalhar de casa. Tenho a sorte ainda maior de ter um
apartamento bonito e confortável, com todos os gatos e livros de que preciso.
Os serviços de delivery me trazem tudo o que é necessário. Não faço nenhuma
falta lá fora e começo a desconfiar que lá fora não me faz falta nenhuma
também.
Mas
não é por isso que não entendo quem busca aglomerações em plena pandemia.
Não
entendo porque não percebo qual é a dificuldade em compreender o mecanismo de
transmissão do vírus; não entendo porque não alcanço a absoluta falta de
empatia de quem liga o “dane-se” a esse ponto.
Não
entendo a realidade paralela em que vivem as pessoas que acham normal ir a uma
festa durante a pior emergência sanitária que já vivemos. Não entendo a vontade
de comemorar o quer que seja quando há tanta gente asfixiada e sem ar nos
hospitais, tanta gente morrendo.
********
Num
vídeo gravado assim que a Polícia Federal foi buscá-lo em casa, o deputado
Daniel Silveira, do PSL, se vangloriou da sua trajetória: “Eu já fui preso mais
de 90 vezes na Polícia Militar do Rio”.
Eu
só queria saber como um homem consegue ser preso mais de 90 vezes e continuar
impune.
Há algo profundamente errado com um sistema que percebe 90 vezes que um homem representa um perigo para a sociedade, mas não consegue impedi-lo de se eleger deputado.
Nenhum comentário:
Postar um comentário