O Estado de S. Paulo
Chance de restaurar a responsabilidade
fiscal em curto prazo foi para o espaço
A Proposta de Emenda à Constituição (PEC)
n.º 23, de autoria do governo federal, propõe o calote dos precatórios. Sem a
manobra, o governo argumenta que o teto de gastos seria rompido. Na verdade, a
PEC é o verdadeiro “meteoro” a explodir o teto e, com ele, a credibilidade que
ainda restasse da política fiscal.
Em março de 2021, a PEC Emergencial
prometeu “resolver” a suposta impossibilidade de acionar os gatilhos do teto.
Essa trava constitucional foi fixada em 2016 para limitar a evolução da despesa
pública primária (sem contar os juros da dívida) à inflação. Ao ser rompida,
medidas automáticas de ajuste fiscal seriam acionadas (gatilhos).
Em 2019, dado o iminente estouro do teto, o
governo propôs a PEC Emergencial. Sob uma interpretação apressada – e errada –,
determinou que o mecanismo de acionamento dos gatilhos da regra do teto original
era inviável. Contudo, uma vez aplicado, teria barrado aumentos de despesas
acima da inflação, a exemplo do reajuste salarial dos militares.
A PEC Emergencial propôs uma nova regra para acionar os gatilhos: quando a despesa obrigatória primária superasse 95% da primária total, ambas sujeitas ao teto. A PEC não avançou, a pandemia chegou e por meio de outra PEC – a do Orçamento de Guerra – afastou-se, temporariamente, a necessidade de observar as regras fiscais.
Imbuído do propósito de solucionar o paradoxo
dos gatilhos, chamemos assim, o Ministério da Economia ressuscitou a PEC
Emergencial no fim do ano passado. O governo colocou na antiga proposta a
previsão de pagamentos adicionais do Auxílio Emergencial. Este poderia ter sido
financiado por meio de créditos extraordinários – sem necessidade de PEC,
registre-se. Uma barganha, trocando-se o auxílio pela “reforma do teto”. Cruel,
mas não surpreendente.
Muito barulho por nada. A “regra dos 95%” é
matematicamente incompatível com o teto. Para que o gasto obrigatório superasse
95% do total, o discricionário teria de ficar abaixo de 5%. Isto é, um volume
tão pequeno que os serviços públicos essenciais bateriam pino, conforme
cálculos da Instituição Fiscal Independente (IFI). Ainda, o pagamento integral
dos precatórios não levaria ao alcance dos 95% em 2022.
Assim, a regra do teto perdeu o condão de
acionar os gatilhos e o novo mecanismo aprovado é impraticável. Isso nos traz à
análise da PEC dos Precatórios. Para 2022 a IFI calcula que, se a inflação do
fim de 2021 ficar igual à que corrigirá o teto (de junho de 2021), haverá uma
folga de R$ 15 bilhões. O governo achou pouco e resolveu alterar novamente a
regra. É a conhecida linha das pedaladas, mas agora constitucionalizadas: se a
regra não ajuda nos objetivos de curto prazo, mude-se a regra.
A desculpa é um suposto “meteoro”. Os
precatórios previstos para o ano que vem, de repente, teriam saltado de cerca
de R$ 57 bilhões para R$ 89,1 bilhões. A verdade é que faltou gestão de riscos.
A AGU defendeu a União nos processos e prestou informações ao Ministério da
Economia. Por que os dados foram minimizados, se constavam até em documentos
públicos oficiais, a exemplo do anexo de riscos fiscais da Lei de Diretrizes
Orçamentárias?
A solução da PEC 23 é pagar à vista os
precatórios de pequeno valor, somada a uma fatia dos demais, limitada a 2,6% da
receita corrente líquida. O restante será parcelado em nove anos e corrigido
pela Selic. A manobra é idêntica à realizada nos tempos da contabilidade
criativa, de 2008 a 2014. Lá, o alvo foi a meta de resultado primário (receitas
menos despesas). Agora, o teto. Algo como R$ 40 bilhões em precatórios serão
pagos no ano que vem. Os outros R$ 50 bilhões, parcelados. O valor mais baixo
abrirá espaço no teto para despesas extras em ano eleitoral.
O gasto social é necessário num contexto de
miséria crescente e desemprego elevado. Mas não por meio da implosão do Bolsa
Família, substituído pelo chamado Auxílio Brasil, como quer a Medida Provisória
n.º 1.061. O aumento do Bolsa Família deveria ser financiado com corte de
despesas ineficientes. Não foi o atual ministro que prometeu tirar o Estado do
cangote do cidadão?
Mudar o teto é mais fácil. A PEC dos
Precatórios propõe que as despesas parceladas sejam pagas por meio de fundo
paralelo ao Orçamento e fora do teto. É o bonde do fura-regra. Na prática, o
teto de gastos já foi rompido. A IFI alertou, ao longo dos últimos anos, sobre
esse risco, monitorando-o com transparência.
O malabarismo contábil era evitável.
Bastaria uma sistemática transparente para os gatilhos, associada à gestão não
imediatista do gasto, à harmonização do arcabouço fiscal e ao compromisso
político permanente.
A PEC dos Precatórios é o verdadeiro
meteoro a dinamitar o teto. Qualquer possibilidade de restaurar a responsabilidade
fiscal no País em curto prazo foi para o espaço. Os juros exigidos pelo mercado
nos títulos públicos já estão aumentando, a inflação resiste à alta da taxa
Selic e a dívida vai crescer.
*Diretor executivo e responsável pela
implantação da IFI.
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