O Globo
O clima na Receita Federal era, na véspera
do Natal, de “indignação coletiva”, na definição de uma fonte. “Essa é a maior
crise da história”, completou. Mas o que acontece lá não é fato isolado. O
governo Bolsonaro tem feito um ataque sistemático ao Estado usando um arsenal
conhecido. Corta cabeças de lideranças com alguma autonomia, aparelha e,
depois, seca recursos. Assim ele fez com Ibama, ICMbio, IPHAN, Funai, Fundação
Palmares, Ministério da Educação, Ministério da Saúde.
Na Receita, o governo cortou dinheiro da manutenção da máquina para ter recursos para aumentar salários da Polícia Federal. Ela mesma, a PF, enfrentou um vistoso caso de intervenção do presidente para retirar sua autonomia e colocá-la a serviço da sua família, como o próprio presidente confessou com palavras chulas naquela famosa reunião ministerial.
Na Receita, centenas de auditores
entregaram seus cargos de direção, o que deixa setores e unidades do órgão
acéfalos. Além disso, 44 integrantes do CARF, o Conselho Administrativo de
Recursos Fiscais, pediram exoneração. A Receita permanece ainda sem corregedor.
E isso é importante para entender a crise. O antigo secretário José Tostes Neto
escolheu um candidato para a corregedoria, que foi aprovado pelo ministro da
Economia, Paulo Guedes, mas foi vetado pela Casa Civil. Já é humilhante ter que
enviar à Casa Civil o nome de alguém do segundo escalão do Ministério.
Subserviente como é, Paulo Guedes aceitou. Pior. Demitiu o secretário com uma
frase esclarecedora: “O presidente quer o seu cargo”.
Nunca se explicou a demissão de José
Tostes. O Ministério fez circular a informação de que ele seria adido na OCDE.
Era mentira. O cargo é exclusivo de pessoal da ativa, Tostes é aposentado.
Tostes não é conhecido do público, tem
horror a entrevistas, e afundou-se no silêncio. Mas um detalhe dessa demissão é
curioso: o governo tem comemorado o aumento da arrecadação em 2021. Mesmo assim
demitiu o secretário? Durante seu período no cargo, Tostes Neto teve três
reuniões com o senador Flávio Bolsonaro ou seus advogados. Numa delas, o
ex-secretário chegou até a ir à casa do senador. Tostes Neto admitiu que foi lá
para “discutir a situação fiscal de pessoas físicas e jurídicas relacionadas ao
senador Flávio Bolsonaro”. Um espanto essa entrega a domicílio qualquer que
seja. Mas o governo queria mais do que isso. E Tostes Neto teria negado.
O senador Flávio Bolsonaro mandou carta
para mim, através da assessoria, negando que tenha qualquer ingerência na
Receita e garante que nunca interferiu. Segundo ele, dizer que houve
interferência — como eu disse e sustento — é “desrespeitoso com a maioria dos
servidores da Receita”. Ora, ora, quem desrespeita a Receita não é uma
jornalista e sim o cotidiano desse governo que tem como objetivo capturar os
órgãos de Estado para que eles funcionem em torno dos objetivos escusos da família
do presidente e dos seus amigos.
Bolsonaro é criminoso confesso em muitos
casos de obstrução do trabalho dos servidores. Fez isso no IPHAN e, como ele
mesmo informou, para atender ao interesse empresarial de um amigo dele, Luciano
Hang. Isso é crime. Beneficiar interesses privados, usando um órgão público
cuja existência ele admitiu desconhecer. Recado ao presidente: O “PH” da sigla
IPHAN significa patrimônio histórico, Bolsonaro, mas certamente isso escapa ao
seu entendimento raso e tosco do que seja o Estado brasileiro. Seu trabalho tem
sido de demolição do Estado.
No caso da Receita, há o projeto de um
bônus já aprovado e depois barrado. Mas a gota d’água foi a decisão do ministro
Paulo Guedes de indicar verbas da Receita, que permitem o funcionamento do
órgão, para os cortes que garantirão os quase R$ 2 bi que vão elevar o salário
da Polícia Federal. Isso foi atear fogo à gasolina. O ministro fez isso e saiu
de férias.
O aumento na PF é a forma de comprar
lealdade dos agentes e delegados depois de o órgão ter sofrido a mais violenta
intervenção. O presidente mesmo admitiu que faria isso, em meio a palavrões com
os quais informou aos seus ministros que queria proteger a família e os amigos.
Os órgãos ambientais, de proteção dos indígenas e de defesa da igualdade racial
vivem a infâmia diária desde o começo do governo. Tudo é parte do mesmo projeto
de destruição e ocupação da máquina. Da terra arrasada, o Brasil precisará se
reerguer.
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