Folha de S. Paulo
É preciso conter manipulação e crimes de
Estado, mentira e política negocista
Um procurador-geral da República sério pode
criar problemas sérios para um presidente da República delinquente. Um
procurador venal da República pode vender sua alma para um presidente que o
seduza com a promessa de uma cadeira no Supremo.
Qualquer presidente pode oferecer essa
mamata. Existe a oportunidade de mutreta judicial também por meio da manipulação
de ministros da Justiça, diretores da Polícia Federal ou ministros de tribunal
superior.
Jair Bolsonaro expôs de vez essas vergonhas. Talvez seja o caso de proibir por lei que chefes da procuradoria, da polícia ou da Justiça possam ser indicados para tribunal superior pelo mesmo presidente que os nomeou para aqueles cargos.
É apenas um exemplo do que é preciso pensar
assim que o país eleger uma ou um presidente que habite o universo da razão e
da decência mínimas. Com Bolsonaro, deve ter ficado clara a ameaça terminal ao
direito, à democracia e à vida por meio da intervenção
tirana em órgãos de Estado. Devem ser feitas mudanças que reforcem a
imunidade das instituições e ao mesmo tempo promovem uma desbozificação do
país.
Um problema sério é o que fazer do partido
militar, dos milhares de integrantes das Forças Armadas que usufruem da
boquinha rica, que pregam tortura, ditadura e golpe, para não falar da politização
dos comandos.
Caso uma burocracia profissional desaloje
os militares de suas bocas, há risco de revanche. Ainda que não seja assim,
ficou evidente que gente armada voltou a ameaçar a política e o funcionamento
das instituições, Supremo inclusive. Falta um novo estatuto explícito e
implícito para as Forças Armadas e polícias.
É preciso criar meios para que o governante
seja rápida e constrangedoramente chamado às falas ou ao tribunal em
caso de mentira e manipulação ou ocultação de dados. A mentira é a
condição essencial de Bolsonaro.
Tentou esconder
números da epidemia. Tenta até hoje manipular
informações sobre desmatamento e queimada. Colocou em dúvida dados do
IBGE (que pode muito bem ser criticado em debate especializado, o que é
difícil, pois procura seguir os melhores padrões técnicos). A Lei de Acesso a
Informação acabou por se transformar em mais um instrumento que o Estado tem
para agir às escondidas do público. Há lei para qualificar a mentira contra a
ordem, a paz e a saúde públicas. Mas é preciso aumentar o risco de que o mentiroso-mor
vá para o cadafalso judicial.
Presidente algum vai se sentir ameaçado se
puder comprar também um presidente da
Câmara dos Deputados, com sua capacidade imperial de decidir sobre
processos de impeachment. Um colegiado amplo, com participação relevante da
oposição, deve ficar com esse poder. Não se trata de facilitar deposições, mas
autoridades devem ter medo da degola.
Claro que apenas reformas institucionais
localizadas não vão dar conta da degradação. É preciso dar um jeito no sistema
político autocentrado, fechado, impermeável à participação democrática,
dedicado à mera autopreservação, um bando de partidos negocistas criado por
incentivos perversos.
Ainda é pouco. O país está em revolta faz
oito anos, ao menos. Por vezes, são pontuais (Junho de 2013). Outras são de
"longa duração": a massa jogada nas periferias por décadas se
revoltou em parte por meio da religião politizada, por exemplo. A
indiferenciação dos partidos políticos e a falta de resultados sociais
profundos da política no período de eleições livres desacreditou a democracia e
tornou atraentes soluções autoritárias.
A desbozificação é mais do que
desbolsonarização: tem de lidar também com o pântano em que isso brotou.
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