Peço perdão a Cabral (o João) por
passar agora da evocação de uma morte e vida severina, alegórico exemplar do seu
poema imortal da humanidade brasileira, para uma alusão à mais abjeta negação
de qualquer humanidade. Incluo, a contragosto, entre as reflexões de hoje, as
mais recentes agressões psicopáticas do presidente da República à dor infinita
do povo que ele deveria defender. Evocar seus ares debochados com as vítimas da
falta de ar e o seu incentivo perverso a saques e outras violências
incalculáveis é um introito necessário ao argumento que aqui procurarei
desenvolver.
O desespero de incontáveis pessoas está
fazendo com que se disponham a pagar qualquer preço para que Bolsonaro seja tirado,
o quanto antes, do lugar de poder que ele desonra. Compreensível desejo que não
pode, contudo, nos distrair da hipótese de que um Putin militar esteja nos
aguardando na esquina. O que o Dr. Marcelo Queiroga está prometendo fazer caso
assuma mesmo o Ministério da Saúde pode dar ideia do que seria o resultado da substituição
do presidente por seu vice, se feita de modo imprudente, sob pressão desse
desespero, ou por sua manipulação. Seria cloroquina, nada mais.
Confirmam-se, no MS, sombrias
conjecturas. O que era péssimo com o general Pazuello, ensaia piorar. Sua queda
banal - que para muitos parecia ser cirurgia providencial, a ponto de se apostar
fichas numa CPI de tempestividade e eficácia duvidosas - não diminuiu a
premência da vigilância constante da fera, pela comunidade da saúde, imprensa e sociedade,
assim como não provou ser medida mais eficaz do que o tratamento paliativo,
tópico, atenuante, conservador, com que a atitude prudencial do Congresso e do
sistema político de um modo geral, contém efeitos dos impulsos de morte emanados
do palácio.
O médico que se quer impor ao ministério é mais perigoso do que o general destrambelhado. Ele pode destilar o veneno da dúvida na opinião técnica, dividi-la, isso resultar em maior desorientação ainda da população e essa desorientação, por sua vez, alimentar ainda mais aglomerações e outras atitudes de risco, às quais terão que corresponder atitudes mais duras de polícias estaduais. Tudo isso gera um altíssimo potencial de conflito político entre poderes e de confrontos de rua, inclusive físicos, entre pessoas. Em síntese, o caos social expresso em desordem. Essa é, ao fim e ao cabo, a meta que Bolsonaro persegue, enquanto finge preocupar-se apenas com as urnas. Resistamos ao autoengano: se urnas prometem, cada dia mais, ser um pesadelo para ele, não se deve esperar que marchará para elas como se fosse um líder democrático, porque ele é a antítese disso. É claro que precisamos estar cientes de que o subversivo fará tudo que estiver ao seu alcance para virar a mesa antes disso. E que quem comanda nossas instituições não pode vacilar um só dia na vigília para impedi-lo de tornar seus planos realidade.
Impedir não é, contudo, virar a mesa
antes dele, permitindo que o impulso autocrático que ele encarna retorne ao
jogo com força. O tratamento conservador, da democracia sem atalhos, continua
sendo crucial para a saúde política e social desse paciente em estado crítico
que é o nosso país, por mais enervante e angustiante que essa linha de
conduta seja. Democracia é a vacina, tudo o mais, cloroquina.
Embora a queda de Pazuello sequer tenha
sido consumada na prática, as primeiras pistas oferecidas pelo agente Queiroga,
um projeto de Dr. No (personagem de romance de Ian Fleming, popularizado pelo
cinema, ao fazê-lo antagonista de James Bond, o agente 007), permite também
imaginar o que seria um pós-bolsonaro antecipado sob a batuta salvacionista do
ex-general Mourão. Ou mesmo a investidura desse último, como quer a
procuradoria do MPF junto ao TCU, na gestão do combate à pandemia. Nenhuma
morte já marcada para ocorrer, por falta de remédios, oxigênio, ou leitos,
deixaria de ocorrer. Mesmo
se um anti-bolsonarista autêntico (que nem de longe é o perfil do ex-general em
causa) chegasse ao MS, levaria semanas, talvez meses, para conseguir o que hoje
falta para salvar vidas de novas dezenas, talvez centenas, de milhares de
brasileiras e brasileiros marcados para morrer anonimamente.
É preciso ver que se torna
cada dia mais difícil conter a revolta e a suposição de alívio que a ideia de
Bolsonaro ser logo afastado produz. Nessas condições, a solução proposta ao
TCU, se considerada, poderá produzir mesmo algum alívio, se for uma tentativa de,
ao menos, impedir o prolongamento da atual tragédia seguindo semestre afora, que é a missão dada, pelo visto,
ao ministro que consta estar prestes a assumir. Ficam, mesmo assim,
dúvidas, que nada têm de laterais, sobre o que ou quem levaria Mourão - caso
assumisse a gestão da pandemia e até cancelasse a virtual nomeação de Queiroga
- a tirar os militares do Ministério da Saúde e sobre até onde iria o seu poder
para tirar, de agências governamentais externas ao MS, outros agentes que poderiam ajudar Bolsonaro a minar uma suposta
nova política sanitária para perpetrar a próxima etapa do seu plano
macabro. Questões em aberto.
A partir dessas dúvidas, alguém poderá
argumentar, com alguma razão, que esse paliativo não resolve, sendo preciso
afastar Bolsonaro, não apenas da gestão da pandemia, como do próprio cargo que
ocupa. Mas ainda que sigamos esse raciocínio aparentemente pragmático,
respaldado pela intensidade da atual tragédia sanitária, é preciso indagar, de saída, em que bases poderia surgir, de fato, um novo
governo e não apenas a troca do ex-capitão por um ex-general no comando do mesmo governo. Quem, nessa situação ditada pelo
desespero, poderia exigir de Mourão o desmonte do atual governo e do dispositivo
paramilitar que foi nele introduzido e, com isso, constituir um governo de
transição? Mais provável seria que tomássemos o caminho da Rússia, mudando
expectativas e regras, para manter a situação.
Com isso não quero dizer que
alternativas intermediárias arriscadas devam ser preliminarmente afastadas, em
qualquer hipótese. Algo que se considera provável não é sempre uma fatalidade,
claro. A política democrática pode criar
caminhos onde parece haver apenas muros e precipícios. Essa é a sua missão legítima, desde
que se respeite a Constituição, a premissa que a legitima. Mas o que não se pode é ser afoito, ou ingênuo, diante dos
perigos. Para evitar risco de Rússia, o melhor é aguentar as pontas até 2022, no limite máximo do possível. E correr o risco de que tentem invadir, antes, o nosso capitólio. Será
custoso defendê-lo, mas igualmente preciso.
O desafio à resiliência democrática já
era grande, antes da reentrada de Lula no primeiro plano da cena política.
Agora, a situação torna-se ainda mais complexa e precisa ser analisada por
ângulos diversos. De um lado, é óbvio que mais gente do topo, do establishment,
seja civil ou militar, tende a ser tomada, como se fossem ultra-esquerdistas
voluntariosos, por uma súbita e suspeitíssima pressa de livrar logo o país de
Bolsonaro e entregá-lo a um guardião que atalhe o caminho até as urnas, não
para calar a voz do demos soberano, mas para modular a sua fala. De outro lado,
a visibilidade que ganhou, há dez dias, uma primeira alternativa pré-eleitoral
concreta a Bolsonaro pode fortalecer e animar democratas de várias orientações políticas a persistirem na aposta na democracia, apesar das tentativas de bloqueio
a essa reta visão que, por vezes, tornam sinuoso esse caminho.
No
horizonte está, como é óbvio, uma eleição daqui a um ano e meio. Ainda bem que
assim é. Ligada a esse horizonte, sem se prender exclusivamente a ele, é que
pode prosperar uma política de unidade democrática. Com o cuidado de não se
fazer dela um evangelho oco, desligado da realidade cotidiana das pessoas
comuns. Tão importante quanto pregar unidade é deixar claro o que se quer dizer
com ela.
Proclama-se
a torto e a direito a necessidade de uma “frente única” contra Bolsonaro. Essa
frente única não é e nunca foi provável, do ponto de vista eleitoral. O que se
pode ter, ou melhor, o que temos tido é uma frente amplíssima em defesa da democracia
contra as investidas golpistas e autocráticas do palácio e de suas cercanias
espúrias, visíveis e invisíveis. E mais recentemente nota-se também a formação
de uma frente política e social igualmente ampla, em prol de vacinas, de
vacinação e do provimento, na contramão da desorientação deliberada que
Bolsonaro dá ao governo federal, de mínimas condições de governabilidade e de
amparo médico, hospitalar e social nesse instante crítico da pandemia.
Mas
isso é uma coisa e a questão pré-eleitoral é outra. Não há como juntar as
forças políticas democráticas, de direita, centro e esquerda em torno de uma
única candidatura já no primeiro turno das eleições presidenciais. Se pensarmos bem, isso nem seria desejável,
pois anteciparia o segundo turno para o primeiro sem que os eleitores pudessem
captar o posicionamento atual de cada força política. Essa visão turva tenderia
a reeditar o script de 2018 e o resultado dele, como sabemos, é o
desastre que vivemos hoje. Lula e o PT podem até ser protagonistas no novo
cenário, sem que isso signifique flertar com a tragédia. Flertar com a tragédia
será, sim, repetir, não tanto os atores, mas aquele script. Entre a
proliferação de candidaturas ao centro e à esquerda (como houve em 2018) e a
antecipação de um segundo turno ainda durante o primeiro, um meio termo é
desejável e possível.
Dois
processos de agregação oposicionistas podem ocorrer, um na centro-direita,
outro na centro-esquerda e ambos tenderem ao centro, com seus candidatos
evitando, ao máximo, trocar farpas e assim prepararem terreno a uma aliança no
segundo turno. A agregação da esquerda ao centro dificilmente se fará em torno
de outro nome que não Lula e de outro partido que não o PT. Já a que pode ir da
centro-direita ao centro é só incerteza se o critério for a intenção de voto,
cuja medição, hoje, só pode refletir o recall de 2018. Se o critério for
o capital político estimado como potencial de voto, a incerteza diminui e
sobressai, como já comentei aqui na semana passada, o nome ex-ministro Luiz
Mandetta.
A possibilidade de uma saída desse tormento por uma via democrática torna legitimo que se fale, sim, abertamente, de política, em plena pandemia. Sei que o preço em vidas para manter a democracia está sendo muito alto. Mas os países que conhecem o seu valor, pagam, porque sabem que ela, a democracia, é a única vacina disponível e que, fora dela, não há solução melhor e mais sustentável do que as lentas e penosas soluções que, através dela, a política pode construir. Essa convicção - sem a qual uma sociedade se torna escrava – é que impede elites políticas e sociedade civil de alienarem a condução do país a autocratas, cloroquinas que estão sempre de plantão. Saber recusar, no meio de uma tragédia social, esse barato que afinal sairá mais caro, é teste definitivo de maturidade democrática. A sociedade que passa por esse teste não só se livra do inimigo - ainda que tarde e chore muitas perdas severinas - como submete à justa punição, na devida hora, quem a ele se aliou na hora de batalhas decisivas.
*Cientista político e professor da UFBA
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