Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
Presidente tem uma vasta ficha corrida de
denúncias e inoperâncias contra as quais busca vacinas para recuperar eleitores
“Nada
com Deus é tudo e tudo sem Deus é nada.” O apelo é de pastor evangélico, mas a
voz é do locutor de rodeios Andraus Araújo de Lima, mais conhecido como
Cuiabano Lima, que, no dia 27 de março, foi o mestre de cerimônias do
pré-lançamento da candidatura do presidente Jair Bolsonaro à reeleição.
Ao longo dos cinco primeiros minutos de sua
fala, um jovem alto e bronzeado permanece ao seu lado com uma camiseta amarela:
“imbrochável&, incomível&, imorrível&, incorruptível&”.
Cuiabano pede aplausos, mas ninguém larga o celular estendido acima de suas
cabeças e o silêncio continua a imperar na plateia.
O locutor tira o chapéu, ajeita a enorme
fivela do cinto e capta o humor da plateia. Pede que levantem as mãos e é
prontamente atendido. “Somente quem tem fé em Jesus levanta a mão”, diz para as
pessoas que permaneciam segurando o celular acima de suas cabeças.
Bolsonaro, que minutos antes havia
atravessado o salão do Centro de Convenções de Brasília sob a saudação
apoteótica de “capitão do povo”, seria um dos derradeiros a falar na cerimônia
que durou 1h45 driblando a lei eleitoral sob o disfarce de ato de filiação ao
PL - “É com ele que vou”.
Estavam presentes pelo menos quatro
ministros - Ciro Nogueira (Casa Civil), Tereza Cristina (Agricultura), Tarcísio
Freitas (Infraestrutura) e Heleno Ribeiro (Gabinete de Segurança
Institucional), além do deputado Marco Feliciano (Republicanos-SP) - que não
pertenciam nem se filiariam ao partido de Valdemar da Costa Neto.
Quando o presidente começou a falar, já estava claro que no discurso, nas ênfases, no formato e nos personagens que o cercam tudo ali era diferente da campanha que o elegeu em 2018. O antipetismo sobrevive, mas Bolsonaro, que acumula índices de rejeição em torno dos 60% nas pesquisas eleitorais, está mais focado em se vacinar do que em alfinetar seu principal adversário.
Se o ex-presidente Luiz Inácio Lula da
Silva arrancou do Judiciário a anulação de todas as condenações pela lista de
malfeitos fartamente explorada pelo bolsonarismo em 2018, o presidente moldou
seu discurso para higienizar a vasta ficha corrida de denúncias que acumulou e
recuperar os eleitores que perdeu.
Foi o locutor dos rodeios de Barretos (SP)
quem deu a primeira picada. “Temos que conversar com nossos filhos. Estão
tentando confundir a cabeça dos jovens. Da mesma forma que Pôncio Pilatos
soltou Barrabás, soltaram aquele homem de nove dedos”, disse, dirigindo-se à
plateia majoritariamente de meia-idade.
Os jovens de 16 a 24 anos são os eleitores
mais desencantados com o bolsonarismo. Às vésperas do segundo turno de 2018,
Bolsonaro, de acordo com o Datafolha, estava empatado com o ex-prefeito
Fernando Haddad com 44% das preferências nessa faixa etária. Na última edição
dessa pesquisa, no fim de março deste ano, Lula marcava mais que o dobro das
preferências de seu adversário (51% x 22%). Os jovens também são aqueles que
menos confiam no que o atual presidente diz. Apenas 6% “sempre” o fazem.
O derretimento de Bolsonaro entre os jovens
mostra como foi efêmera a contribuição de Olavo de Carvalho para suas bases
ideológicas. O ideólogo da guerra cultural bolsonarista em 2018 dizia que a Presidência
não bastava. Era preciso tomar o Judiciário, universidades, igrejas e partidos.
Foi com esse enfrentamento da “hegemonia
cultural da esquerda” que Carvalho catequizou formadores de opinião da
juventude. A ponto de o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-RJ) ciceronear
seu guru, ao longo da campanha de 2018, como o homem sem o qual seu pai não
existiria.
Os dois meses que se passaram desde a morte
de Olavo de Carvalho foram suficientes para mostrar que a frase do filho do
presidente, se algum dia foi levada em conta, já não tem mais valia. Bolsonaro
sobrevive, mais dependente do eleitorado evangélico do que da juventude que o
guru do seu movimento quis catequizar.
Naquele fim de semana, um ministro do TSE
que já havia recusado ação do PL por propaganda eleitoral antecipada contra
outdoors bolsonaristas resolveu multar a direção do festival de música
Lollapalooza, onde a cantora Pabllo Vittar desfilou com uma toalha estampada
com a foto de Lula e puxou a fila de manifestações de artistas em defesa do
ex-presidente. Depois da péssima repercussão da multa nas redes sociais,
Bolsonaro agiu como se a ação tivesse sido feita à sua revelia, o PL a retirou
e o juiz anulou a decisão.
A reprovação à censura já tinha mostrado
que a ação tinha sido um tiro no pé quando Bolsonaro subiu ao palco do evento
do PL e deu ares de reflexão ao apelo para que os mais velhos patrulhassem o
voto de seus filhos: “Não podemos esquecer nosso passado, porque aquele que
esquece seu passado está condenado a não ter futuro. Os mais jovens podem não
conhecê-lo. Seus pais e avós têm obrigação de mostrar pra eles para onde o
Brasil estava indo, e também como vivem os jovens em outros países como, por
exemplo, na Venezuela”.
O presidente diz não ter se vacinado contra
a covid-19, mas agora precisa, mais do que nunca, se imunizar contra os fatos
que se consolidaram contra seu governo. “A história é uma só”, disse, ao fim da
reconstrução do seu percurso. O marco zero da narrativa bolsonarista é a
formatura da Academia Militar das Agulhas Negras, em novembro de 2014. Passa
pelo impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff (“Não podia deixar que um
amigo, que lutou pela democracia, que teve sua reputação quase destruída, não
fosse citado”) e pela facada em Juiz de Fora (MG) até chegar à eleição.
Seu governo é o que menos interessa ali.
Lamenta as mortes, mas alveja a ação daqueles que tentaram evitá-las. E elege
como legado da doença que, ao final deste governo, terá levado 700 mil
brasileiros, o rechaço ao confinamento.
O espetáculo protagonizado pelo vaivém de
João Doria, o governante que mais riscos assumiu para a vacinação dos
brasileiros, não deixa de ser uma demonstração de que, na sua guerra contra os
fatos, Bolsonaro foi vitorioso em algumas batalhas. Noves fora os erros que
cometeu, a marginalização do pai da Coronavac na disputa e a resistência do
exterminador do futuro nacional é um termômetro pouco alentador da democracia
brasileira.
Outra vacina que exibiu no evento foi a da
corrupção. E o fez aposentando um baluarte de 2018, o anticomunismo. Não há uma
única menção em seu discurso. Aliança com o Centrão, quatro ministros demitidos
por corrupção e quase 150 pedidos de impeachment depois, Bolsonaro achou por
bem reciclar a ênfase do anticomunismo - “Nosso inimigo não é externo, é interno.
Não é uma luta da esquerda contra a direita. É do bem contra o mal”.
Contra o movimento social que agita,
Bolsonaro resolveu apresentar o governo que organiza. Convocou Tereza Cristina
e colocou o braço curvado em 90 graus sobre os ombros da ex-ministra da
Agricultura para ouvi-la contar sobre o assentado em Sergipe que lhe havia
mandado um recado: “Diga ao presidente que ele nos tirou da prisão”. Tereza
Cristina e Michelle Bolsonaro preenchem a cota feminina do palanque cuja
transmissão repousava frequentemente nas mulheres da plateia. Convocada, a
primeira-dama, de longo, pronunciou quatro “améns” em menos de um minuto.
Não venham lhe apresentar a fatura das
políticas públicas sequeladas. Ele as contraditará com o fim da tutela do
Estado. É esta a vacina anti-inépcia. Seu governo desempregou, mas ele
reinventou o empreendedorismo, com o Pix. As universidades continuam
destroçadas, mas foi lançada uma boia aos inadimplentes do Fies. Até o Auxílio
Brasil de R$ 400 é embalado no discurso antitutela para que não pareça um banho
de loja no petismo.
Coube ao general Heleno Ribeiro, outro dos
ministros convocados ao palco, exibir o discurso com o qual o bolsonarismo se
vacinará contra a divisão da “família militar” em relação ao legado do “capitão
do povo”. Se, em 2018, os militares viram na ascensão de Bolsonaro um meio de
vingar os relatórios produzidos pela Comissão da Verdade no governo Dilma, sua
reeleição será uma oportunidade de “responder às ofensas” de que foram alvo ao
longo dos últimos três anos e três meses - “Já fomos jogados pela janela várias
vezes, ofendidos. Estou quieto, vamos aguardar o fim deste filme que, graças a
Deus, será glorioso”.
O estoque de vacinas ainda se completaria
com o locutor, que engatilhou duas picadas seguidas - “Depois que Jair Messias
assumiu a Presidência, voltamos a ter o respeito de todos os países do mundo” e
“quem comprou e pagou as vacinas foi o governo federal” - antes de chamar um
pai-nosso e o hino nacional. A câmera parou nas mulheres, que, com a mão
direita sobre o peito, cantavam o hino de olhos fechados como se rezassem.
Anunciou-se, então, a apoteose do evento,
quando Bolsonaro e Michelle ficaram a sós e de mãos dadas no palco para, sob as
luzes apagadas, assistirem a um filmete de três minutos sobre a vida e a obra
de Jair Messias - de Eldorado ao Planalto. “O povo te ama, capitão”, encerrou o
locutor.
Bem, deveria ter sido encerramento, mas
Flavio Bolsonaro e a mulher ainda subiriam ao palco para outra picada. O
senador, que ainda tem quatro anos de mandato, disse que foi convencido a falar
como filho. Responsável, junto com seus irmãos, por uma das vidraças da
campanha, ele descreve uma idílica relação entre pai e filho. O senador das
rachadinhas, que mora na mansão de R$ 6 milhoes, chama o pai de “professor de
sua vida”. Certamente porque acredita que, assim, também fará uma higiene na
sua própria imagem.
“Por trás dessa fortaleza há uma pessoa que
às vezes tem dificuldade de mostrar o homem amoroso que é, sensível e com o
coração do tamanho do mundo (...) Quando ele vem defender o instituto família,
não está defendendo um filho, um parente, até porque não fizemos nada de
errado. Ao defender a família, ele está colocando Deus em primeiro lugar”.
A câmera foca em olhos marejados na plateia e Cuiabano Lima chama os presentes para cantar os parabéns para Jair Messias e Michelle, que haviam aniversariado dias atrás, quando um bolo, confeitado com uma farda militar verde chega ao palco.
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