Se
bem conduzida, comissão do 8/1 pode ser acerto de contas da nação
O
Gonçalves Dias da vez é de uma pátria longe da edênica de sabiás e palmeiras.
Sua imagem na invasão do Planalto abre-se a interpretações —agiu em suporte ou
desbaratamento? O tempo da política é o instantâneo e, na dúvida, a
cabeça do general, que não é poeta, rolou.
A
celeridade do gesto governista não conteve a sanha da oposição em alongar o
problema. Aí
vem CPI (ou CPMI, o "m" indica o misto de senadores e
deputados). O objetivo, em princípio, é esclarecer o 8
de janeiro. Mas, dada a polidez e o autocontrole dos oposicionistas,
explicitados em sessão recente pelo deputado 03, pode desandar para outro
propósito.
Reconstruir os fatos e responsabilizar os envolvidos, direta ou indiretamente, é imperativo. Já se investigou muito, mas também é muito o que falta. O evento ainda nem tem nome próprio. Prevalece o desnorteio nominativo: invasão, atos antidemocráticos, intentona, terrorismo, golpe. Nomear é delicado porque encaixa o acontecimento num molde, encaminha uma leitura.
Os
nomes provisórios convergem, contudo, em indicar que se tratou de uma ação
organizada. Quanto mais informações emergem, mais o ponto se comprova.
Organização, no entanto, não quer dizer complô superplanejado, como nas teorias
da conspiração. A realidade é mais complicada, com gente dando tiro no pé e
iniciativas produzindo o oposto do esperado.
Acontecimento
do porte do 8 de janeiro não se resume a um vilão no centro do PowerPoint.
Resulta de atos de muitos grupos, nem sempre com mesmos objetivos e líderes,
que se cruzam. É um mar de ação coletiva, no qual deságuam muitos pequenos
afluentes.
Entender
o ordenamento requer coletar e checar consistência e confiabilidade de
documentação farta e variada. Não é para amadores. Uma CPI séria terá de fugir
da areia movediça das impressões e se fincar em pesquisa robusta.
Assim
como o janeiro trumpista deu
o modelo para o nosso, a comissão de investigação da Câmara dos Deputados
norte-americana dá exemplo de relatório potente. O comitê de nove
parlamentares, entre democratas e republicanos, depois de ano e meio de
trabalho, soltou catatau de 845 páginas. Chama-se Final Report. Select
Committee to Investigate the January 6th Attack on the United States Capitol.
Ficou
enorme porque detalha minuciosamente a maquinação e os fatos, acompanhado de links
para documentos, uma felicidade para historiadores do futuro. Mas traz no
início um sumário de 130 páginas, para dar o sumo aos cidadãos do presente.
Quatro
capítulos se detêm na preparação e escancaram o tamanho da culpa presidencial
no cartório. Depois vem um descritivo da invasão tim-tim por tim-tim.
Identificam-se responsabilidades e omissões de agentes institucionais, os
movimentos sociais convocadores (o mais conhecido é o Proud
Boys) e os líderes no curso da invasão.
A
leitura é alucinante, mas desvela personagens menos alucinados do que se
suporia. Mostra que o caos aparente tem sua lógica. Houve quem concebesse,
recrutasse, pusesse em marcha. A coordenação se exibiu até enquanto a ação
transcorria.
O
relatório gringo seria um bom modelo para a CPI. Contudo, tomar essa trilha
demandaria empenho coletivo —não apenas do governo, como da oposição— em punir
os culpados pelo ataque à democracia. Bem conduzida, a CPI poderia ser um
acerto de contas da nação consigo mesma. Mas, se adentrar o estilo bolsonarista
de debate, será só furdunço mesmo.
*Professora de sociologia da USP e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento
Nenhum comentário:
Postar um comentário