domingo, 1 de outubro de 2023

Dorrit Harazim - Dores civilizatórias

O Globo

Enfadados, assistimos a guerras reais em tempo real, com a geopolítica mundial em terreno movediço

Para tempos incertos, recomenda-se apaziguar a alma com algum dos escritos de Bertrand Russell. Não apenas porque esse generoso filósofo e matemático do século XX sabia pensar, como também porque sabia escrever — tanto assim que levou o Nobel de Literatura em 1950. Acima de tudo, porém, ele foi um humanista, e é de humanistas com profundo respeito pela História que nosso planetinha mais carece.

Tome-se, ao acaso, “New Hopes for a Changing World” (de domínio público no original em inglês), escrito quando o mundo começava a se reconhecer entre os destroços da Segunda Guerra e o medo de um novo perigo, o nuclear. Vivia-se um “sentimento de impotente perplexidade”, em meio ao qual quem ostentava certezas era ignorante, e os dotados de criatividade, de percepção da realidade, afundavam em dúvidas e indecisão.

— Homens e mulheres manifestam dúvidas genuínas sobre o que é certo ou errado — escreveu o pensador — a ponto de “certo” e “errado” serem frequentemente descartados como superstições obsoletas.

Nada mais atual que essa tormenta universal definida por Russell como “dores do amadurecimento de nossa civilização”. Hoje, essas dores se agravaram, e o que mais se vê é ausência de maturidade no horizonte. Regredimos para aquém do “certo” ou “errado”, pois nem sequer nos entendemos sobre o que existe, o que é real, o que é fato. Nessa toada, nosso tripé de embates civilizatórios — com a natureza, com nossos semelhantes e de cada um consigo mesmo — retrocedeu algumas casas.

Mais de 70 anos atrás, Russell já alertava sobre os componentes malignos da cultura ocidental: o desassossego, o militarismo, o fanatismo, a crença implacável na modernidade à custa de uma real compreensão de como alcançar uma prosperidade mais igualitária. Se tomarmos como fundamentos de sociedades liberais a tolerância à diferença, o respeito aos direitos individuais e o Estado de Direito, acabaremos concordando com o cientista político Larry Diamond que o planeta, hoje, sofre de recessão democrática. Levantamentos anuais realizados pela Freedom House atestam um persistente declínio no respeito a direitos políticos e civis ao longo dos últimos 16 anos. Em todo o mundo.

Estamos em estado de insegurança permanente — da climática à empregatícia. O tempo parece encurtar a cada dia, e a erupção da Inteligência Artificial no cotidiano ainda não aprendeu a nos aquietar. Enfadados, assistimos a guerras reais em tempo real, com a geopolítica mundial em terreno movediço. A última delas nem pode ser chamada de guerra —foi uma operação cirúrgica de limpeza étnica. Em menos de 24 horas, antes mesmo de aprendermos onde e o que era o enclave autônomo armênio de Nagorno-Karabakh, o território de 120 mil moradores deixou de existir. Teve de capitular diante da ofensiva militar relâmpago desencadeada pelo Azerbaijão. Foi apenas o coup de grâce, pois há meses o governo azerbaijano vinha mantendo bloqueio total de alimentos ao indesejado enclave. Estima-se que perto de 80 mil desses armênios enxotados rumam de forma atabalhoada pelas montanhas do Cáucaso, em direção à mãe pátria. Mais um êxodo de população enxotada na conta da nossa incivilização.

Do lado de cá do planeta, a eventualidade de Donald Trump conseguir ser reeleito para um segundo mandato soa absurda diante da penca de processos federais e estaduais a que responde — todos com penas de prisão fechada, se condenado. Ainda assim, sua candidatura pelo Partido Republicano mantém o fôlego, e sua campanha continua a incitar abertamente à violência política. Vingança tem sido a palavra de ordem de seus seguidores. Para o general Mark Milley, chefe do Estado-Maior Conjunto que se opôs às aventuras extraconstitucionais do 45º presidente, Trump agora acena com a pena de morte, por traição. Delírios como esse em nada ajudam a dissolver a insegurança global com a safra atual de mandatários — entre megalomaníacos e medíocres, autocratas e gerentões de ocasião, sobra pouco espaço para algum fazer História.

Pois é no Brasil governado por Lula que brota a oportunidade de o país reparar uma dor nacional e fincar pé no que a humanidade tem de mais moderno, por eterno. Presidentes costumam se queixar de que podem menos do que pensam seus eleitores, e de quanto a engrenagem institucional da Presidência é limitada. Pois estamos às vésperas de uma decisão em que o presidente do Brasil pode tudo, e só ele pode, sozinho: escolher quem deve preencher a(s) próxima(s) vagas no Supremo Tribunal Federal. Se não escolher uma mulher, não escolher uma mulher negra, estará enterrando a oportunidade única de fazer o certo. Para sua biografia e para o país. Não é favor, é dívida civilizatória acumulada por todos seus antecessores. Dor civilizatória zero.

 

7 comentários:

EdsonLuiz disse...

■Dorrit,
▪Para Lula acertar suas escolhas para o STF ele teria que 1° arranjar um jeito de afastar Luiz Tófoli e Cristiano Zanin, que escancaradamente estão lá no STF não como ministros, mas para darem proteção a Lula nos muitos absurdos e delinquências que ele comete.

EdsonLuiz disse...

■E Lula teria, para admitir seus erros morais só no STF, que pedir desculpas por ter tido ali Ricardo Lewiandoviski, que liderou o grupo de ministros STF de proteção para garantir a impunidade de Lula.

EdsonLuiz disse...

■O STF foi transformado no que estamos vendo, deservindo a democracia.

▪Reconheça-se os bons acertos do STF na abordagem das questões de minorias e de maiorias discriminadas, dando respaldo e reconhecimento para suas lutas legítimas. Mas estes acertos não podem servir de desculpas para o papel de instituição particular que o STF tem tido em vários casos e para poucas e desaconselháveis pessoas, Lula incluído.

▪Mesmo a intenção de acertos do STF na punição dos envolvidos com os movimentos golpistas que desembocaram no "08deJaneiro" estão parecendo ser por encomenda, ao punir tão severamente os pequenos que foram arrastados para aquilo por quem realmente já deveria estar sendo punido, que são Bolsonaro e sua curriola e não os bolsonarozinhos de baixo.

Mesmo as imagens de câmeras daquele dia 08 que Flávio Dino está negando para apuração, e eu não sei o porquê de ele estar negando, o STF não obriga Flávio Dino entregar.

EdsonLuiz disse...

■A indicação de um novo ministro para o STF por quem roubou $Bilhões de dinheiro do Orçamento público, dinheiro que deveria ter sido investido em educação, em saúde, financiado fábricas, e foi transformado em sítios, tríplex e coisas assim, e que também foram dados para tubarões de empreiteiras como Odebrecht e Léo Pinheiro, me assusta.

A composição do STF estar sendo decidida por quem tem uma personalidade e caráter que faz o que Lula faz só pode assustar!

E no Brasil estas são coisas que têm se repetido::
▪O presidente anterior foi o miiciano Jair Bolsonaro, que aplicou o mesmo critério que Lula aplica ao escolher ministros do STF. Bolsonaro escolheu André Mendonça e Kássio Nunes Marques, que têm tido para Bolsonaro, no STF, o mesmo papel que José Luiz Tófolli, Ricardo Lewiandoviski e Cristiano Zanin têm para Lula, de fazer por Bolsonaro e não pelo país.

ADEMAR AMANCIO disse...

Uma ''mulher negra'' que se chama Dino,rs.

EdsonLuiz disse...

É olha que pode ser "uma mulher negra" que se chama Simone Tebet.

EdsonLuiz disse...

É MUITO IMPORTANTE TER PESSOAS PRETAS EM POSIÇÕES DE MANDO E DECISÃO

■Há, Sim, algumas coisas que são simbólicas -- na verdade, há várias coisas que são simbólicas, não só algumas-- e que são importantíssimas!
▪Uma coisa supersimbólica é ter pretos (negros é o C*#&@*^!) em posições importantes nas instituições importantes.

E penso que não pode ser um preto que, talvez querendo agradar ao "chefe" e às franjas de suas bases mais radicais, vive defendendo certos absurdos ideológicos. =》 Muito surpreendido, porque pensei que ele fosse bem mais preparado intelectualmente e maduro politicamente, vi Silvio Almeida fazendo certas associações por puro ideologismo.

■Os pretos têm que ser escolhidos para posições de mando e decisão, e o critério não pode ser apenas por ele ser preto ; o preto tem que ser escolhido por ser preparado, competente e politicamente maduro.

Se tem pretos assim para serem indicados?
▪Claro que tem! E quando pretos passarem a ocupar em maior número estes lugares importantes isto vai dar perspectiva para mais milhões de pretinhos que hoje têm 6,7, 8 aninhos de idade.

Tem que ter preto ficando importante e tem que ter escola de qualidade para pobres.

Tem, sim!