domingo, 1 de outubro de 2023

Jorge Caldeira* - Capital ambiental desenvolve?

O Estado de S. Paulo

Pode ser que fração relevante da montanha de capital para aplicação em energia renovável e fixação de carbono desabe cada vez mais por aqui. Bom? Nem sempre

A pergunta do título talvez expresse um antigo senso comum nacional – que destoa de certos movimentos da economia. Começando por estes: um fluxo de riqueza acumulada, na forma de capital, medido num mínimo de US$ 2 trilhões anuais, está indo especialmente de investimentos em carvão, gás e petróleo para aplicações basicamente em energia renovável e fixação de carbono.

Esse fluxo tem o Brasil como um dos alvos preferenciais – o que gera um inusitado problema. O Produto Interno Bruto (PIB) do País flutua em torno de US$ 1,5 trilhão. Paira a possibilidade de uma fração relevante da montanha de capital, de magnitude maior que esse PIB, desabar cada vez mais por aqui.

Bom? Nem sempre. A visão de capital abundante vindo de fora como ameaça tem raízes históricas profundas. A grande questão econômica brasileira do século 20 tinha nome: “desenvolvimento”. As melhores mentes do País quebravam a cabeça em torno do objetivo, buscando fórmulas para reunir um mínimo de capital numa realidade na qual ele era escassíssimo.

Valia de tudo – até mesmo transformar impostos cobrados da sociedade em capital de empresas estatais, funcionários públicos probos em gestores de risco. Atitude realista até a multiplicação do preço do petróleo, em 1973. Ela gerou fluxos de capitais globais muito abundantes. A escassez terminara.

A reação brasileira à mudança foi desfrute de regime autoritário. Tomar os recursos como empréstimo estatal, implementar com eles um programa de investimentos que faria o “desenvolvimento” a partir do governo, isolando o mercado interno da ameaça dos então chamados “capitais multinacionais”. O País colecionou pobreza sozinho. Já o mundo, enriquecido pelos negócios criados com os capitais abundantes da globalização, pouco se lixou.

Agora há um novo fluxo de capitais globais, uma nova oportunidade. Mas a desconfiança para planejar economia com eles é herança que turva as percepções. Não é um problema geral. Capitais aplicados em energia renovável, por exemplo, trafegam em ambiente acostumado ao padrão global.

Já floresta é realidade local.

E aplicar capital na atividade de fixar carbono nela é investimento de ponta, para criar mercado onde ele ainda não existe. Não falta quem enxergue esse movimento como uma ameaça externa, como um investimento destinado a impedir os negócios existentes, voltar os brasileiros à condição de selvagens primitivos.

Será? Um modo simples de lidar com o dilema sem ideologia é pensar a partir do território brasileiro. O Brasil país tem uma área de 851 milhões de hectares. Como se distribuem as atividades na parte natural desse espaço?

Começando pelo etanol – afinal, o produto tecnológico brasileiro que marcou a entrada da natureza na produção de energia, em escala global. A cana para a produção desse biocombustível, mais aquela destinada ao açúcar, ocupa uma área de 8,1 milhões de hectares, ou pouco menos de 1% do território nacional. Cabe muito mais.

Indo para o agronegócio tradicional. Toda a produção de grãos no Brasil ocupa uma área de 77 milhões de hectares, ou 9,4% do território. E subindo na escala: as pastagens se espalham por 156 milhões de hectares – 18,3% do território brasileiro. Somando as duas, são 236 milhões de hectares e 27,7% do território.

Para quem imagina que esse é o domínio da grande propriedade, eis um dado essencial. O Brasil tem 6,4 milhões de imóveis rurais registrados no Cadastro Ambiental Rural (CAR). A área total deles é de 419 milhões de hectares. Com isso, a instalação média brasileira teria 65,4 hectares. São 27 alqueires paulistas ou 13,5 mineiros.

Comparação? Nos Estados Unidos, espalhadas por 9,38 milhões de quilômetros quadrados, existem 2,1 milhões de propriedades rurais. Uma divisão direta daria 446 hectares por propriedade – mas as bases de cálculo são diferentes.

Todas as instalações privadas registradas no CAR ocupam apenas 51,4% do território nacional. Como, ainda assim, é área bem maior que a empregada para o agronegócio como um todo, sobra uma fatia imensa, com um mínimo calculado em 72 milhões de hectares de florestas em áreas privadas.

E sobra ainda muita área potencial para restaurar florestas. Apenas as áreas da pecuária identificadas com sinais de degradação se estendiam por 82 milhões de hectares, em 2020. O País já tem um modelo pronto e no pipeline de financiamento do BNDES, pelo qual pecuária e árvores se combinam para chegar ao carbono neutro na atividade. E já avança muito em rações que diminuem as emissões de metano, melhorando ainda mais as perspectivas.

O espaço do artigo está acabando, de modo que não vai dar para falar nos 278 milhões de hectares (33% do território) que são florestas preservadas em áreas governamentais de conservação e reservas dos povos originários. Nem do espaço natural remanescente – com destaque para 50 milhões de hectares de florestas em áreas sem titulação, desde os tempos pré-cabralinos.

Fica o essencial: quando se pensa em economia de carbono neutro e nos projetos que podem ser mobilizados com os novos capitais que se tornam disponíveis no planeta, uma soma real talvez possa ser hipótese mais realista de planejamento do crescimento econômico que antigas antinomias.

*Escritor, é membro da Academia Brasileira de Letras (ABL)

Um comentário:

Daniel disse...

Excelente. Mas temos que lembrar que uma parte da Amazônia não é floresta, e a maior parte do cerrado e da caatinga não são floresta, da mesma forma como partes expressivas do sul do Brasil (apenas 1/3 do RS foi florestal). Ou seja, parte significativa do nosso país não era florestal, e tem pouco sentido pensar em plantar árvores nela.