quarta-feira, 27 de março de 2024

Martin Wolf* - O fascismo mudou, mas não está morto

Valor Econômico

O que se vê hoje é um autoritarismo com características fascistas

Estamos assistindo à volta do fascismo? Será que Donald Trump, para usar o exemplo contemporâneo mais importante, é um fascista? E a francesa Marine Le Pen? Ou Viktor Orbán, da Hungria? A resposta depende do que se entende por “fascismo”. Porque o que presenciamos hoje não é apenas autoritarismo. É um autoritarismo com características fascistas.

Precisamos começar com duas distinções. A primeira é entre o nazismo e o fascismo. Como o falecido Umberto Eco, humanista e escritor, observou em um ensaio sobre “O Fascismo Eterno”, publicado na “New York Review of Books” em 1995, o “Mein Kampf de Hitler é um manifesto de um programa político completo”. No poder, o nazismo foi, tal como o stalinismo, “totalitário”: ele controlava tudo. O fascismo de Mussolini era diferente. Nas palavras de Eco, “Mussolini não tinha uma filosofia: tinha apenas retórica... O fascismo era um totalitarismo confuso, uma colagem de ideias filosóficas e políticas diferentes, um emaranhado de contradições”. Trump é igualmente “confuso”.

A segunda distinção é entre o passado e hoje. Os fascismos dos anos 1920 e 1930 surgiram da Primeira Guerra Mundial. Eram naturalmente militaristas tanto nos meios como nos objetivos. Além disso, naquela época a organização centralizada era necessária para que as ordens fossem difundidas. Hoje em dia, as redes sociais farão grande parte desse trabalho.

Portanto, o fascismo de hoje é diferente daquele do passado. Mas isso não significa que a noção seja desprovida de sentido. No seu ensaio, Eco descreve uma série de características do “Ur-Fascismo - ou Fascismo Eterno”.

Uma característica é o culto à tradição. Os fascistas veneram o passado. O corolário é que eles rejeitam o moderno. “O Iluminismo, a Era da Razão, é visto como o início da depravação moderna. Neste sentido, o Fascismo Eterno pode ser definido como irracionalismo”, escreve Eco.

Outra característica é o culto da ação pela ação, da qual decorre outra: a hostilidade à crítica analítica. E segue-se daí que o “Ur-Fascismo... busca o consenso com a exploração e a exacerbação do medo natural da diferença... Assim, o Fascismo Eterno é racista por definição”.

Outro aspecto é que “o Fascismo Eterno tem sua origem na frustração individual ou social. É por isso que uma das características mais típicas do fascismo histórico era seu atrativo para uma classe média frustrada”.

O Fascismo Eterno une os seguidores que recruta nas fileiras da classe média insatisfeita por meio do nacionalismo. Esses seguidores, diz Eco, “precisam sentir-se humilhados pela riqueza ostentosa e pela força dos seus inimigos”. Além do mais, para o Fascismo Eterno “não há luta pela vida, pelo contrário, a vida é vivida para a luta”.

Em seguida, para Eco, está o fato de que o Fascismo Eterno defende um elitismo popular. “Cada cidadão está entre as melhores pessoas do mundo”, escreve ele em seu ensaio. E mais: “Todos são educados para se tornarem heróis”.

Para o Fascismo Eterno, “o Povo é concebido como uma... entidade monolítica que expressa a Vontade Comum”, acrescenta Eco. “Já que não há como um grande número de seres humanos terem uma vontade comum, o Líder se coloca como seu intérprete”.

No populismo de direita de hoje nota-se o culto ao passado e às tradições, a hostilidade à crítica, o medo das diferenças e o racismo, as origens na frustração social, o nacionalismo, a crença fervorosa em conspirações e a visão de que o “povo” é uma elite

A origem do machismo característico do Fascismo Eterno é que “o Ur-Fascista transfere sua vontade de poder para questões sexuais”. Aqui está implícito tanto o desdém pelas mulheres como a intolerância e a condenação de hábitos sexuais fora do padrão.

Por fim, o “Fascismo Eterno fala a Novilíngua” - ele mente de maneira sistemática. Como Hannah Arendt observou em uma entrevista à “New York Review of Books” em 1978: “Se todo mundo sempre mente para você, a consequência não é que você acredita nas mentiras, mas sim que ninguém acredita mais em nada”. Os seguidores acreditam no líder simplesmente porque ele veste o manto sagrado da liderança.

Esta é uma lista fascinante. Se olhamos para o populismo de direita de hoje, notamos precisamente os cultos ao passado e à tradição, a hostilidade a qualquer forma de crítica, o medo das diferenças e o racismo, as origens na frustração social, o nacionalismo e a crença fervorosa em conspirações, a visão de que o “povo” é uma elite, o papel do líder em dizer a seus seguidores o que é verdade, a vontade de poder e o machismo.

Ainda este mês, Trump descreveu os imigrantes como “animais”, ameaçou um “banho de sangue” se não ganhar as eleições e enalteceu os insurrecionistas de 6 de janeiro de 2021 como “patriotas incríveis”. Sabemos que ele e seus seguidores pretendem encher a burocracia e o Judiciário com pessoas leais a ele e criticam o sistema judicial por responsabilizá-lo por seu atos: afinal de contas, ele está acima da lei. Não menos importante, ele transformou o Partido Republicano em um partido de sua propriedade.

Sim, os movimentos de hoje também são diferentes dos movimentos dos anos 1920 e 1930. Trump não glorifica a guerra, a não ser as guerras econômicas e comerciais. Mas ele glorifica Putin, a quem chamou de “gênio” por conta de sua guerra contra a Ucrânia. Os políticos europeus com raízes no passado fascista também são diferentes entre si. No entanto, eles compartilham, sim, muitas características do Fascismo Eterno, em especial o tradicionalismo, o nacionalismo e o racismo, mas não têm outras, em particular a glorificação da violência.

O fascismo da Alemanha ou da Itália dos anos 1920 e 1930 não existe hoje, exceto, talvez, na Rússia. Mas o mesmo poderia ser dito de outras tradições. O conservadorismo não é o que era há um século, e o mesmo vale para o liberalismo e o socialismo. As ideias e propostas concretas das tradições políticas são alteradas com a sociedade, a economia e a tecnologia. Isso não é nenhuma surpresa. Mas essas tradições ainda têm um núcleo comum de atitudes em relação à história, à política e à sociedade. Isto também é verdade para o fascismo. A história não se repete. Mas ela rima. Está rimando agora. Não seja complacente. É perigoso dar uma volta com o fascismo. (Tradução de Lilian Carmona)

*Martin Wolf é editor e principal comentarista econômico do FT.

Um comentário:

ADEMAR AMANCIO disse...

Muito bom o artigo!