O Globo
Ela virou pop nas redes, com direito a memes
afetuosos e bem-humorados em torno de suas gafes, gargalhadas fora de hora
Faltam pouco mais de cem dias até a linha de chegada à Casa Branca. Para o candidato republicano Donald Trump, uma eternidade indigesta. Até a noite de domingo passado, com um ouro em sobrevivência sapecado na orelha e seu único adversário exigindo cuidados especiais, ele ainda podia dar-se à ilusão de favorito nas eleições de novembro próximo. Não mais. A saída por W.O. do presidente Joe Biden e a entrada na competição de Kamala Harris mudaram radicalmente a dinâmica da disputa. De primeira mulher vice-presidente dos Estados Unidos, a multirracial Kamala (pai jamaicano, mãe indiana) empunhou o bastão democrata com vigor faiscante. Os caciques e doadores do partido, aliviados com essa solução de ultimíssima hora, abriram-lhe os cofres e correram para o abraço. Falta-lhe apenas ter a candidatura sacramentada na Convenção Democrata que começa no próximo 19 de agosto. A partir daí, restarão a Kamala 75 dias para convencer o eleitorado americano da oportunidade que tem em mãos: votar no futuro e fazer História elegendo-a 47ª presidente dos Estados Unidos.
Quando Joe Biden, em seu discurso de
despedida da competição, rendeu-se à realidade de que chegara “a hora e o
momento para novas vozes, vozes mais jovens — e essa hora e momento são agora”,
não se referia à garotada que lacra e cria memes em redes sociais. Pois foi ali
que Kamala fez sua primeira, e totalmente inesperada, conquista. Num movimento
orgânico e espontâneo, de baixo para cima, “Kamala” virou pop nas redes, com
direito a memes afetuosos e bem-humorados em torno de suas gafes, gargalhadas
fora de hora, dancinhas inesperadas e frases sem nexo quando fora de contexto
como “adoro os diagramas de Venn” ou “você acha que simplesmente caiu de um
coqueiro?”.
Foi como um abrir da comporta do humor e do
bom humor, do riso — três elementos que desestabilizam e afrontam a pátria
trumpista. Uma única compilação desses clipes recebeu 14 milhões de
visualizações no X. Uma postagem de três palavras — “Kamala IS brat” —, feita
pela sensação musical britânica Charli XCX, pegou a mídia tradicional,
políticos e analistas de calças curtas. A grande maioria não sabia o que é
ser brat (*), muito menos quem era Charli, cuja postagem já
ultrapassou 50 milhões de visualizações. A candidata democrata soube aproveitar
a onda e colocou a música “Femininomenon” em sua conta no TikTok. A jocosidade
de Kamala, cujas risadas sem freio geravam incômodo em muitos democratas,
passou a ser vista com alívio e sinal de vitalidade, escreveu o New York Times.
O contraste com a figura quebradiça, fragilizada e hesitante de Biden não
poderia ser maior.
Quisera Trump conseguir gerar tanta aceitação
espontânea por parte da geração Z. Nascidos no final dos anos 1990, início do
milênio, eles representam a faixa etária eleitoral difícil de ser energizada
por qualquer um dos dois grandes partidos americanos. A última vez em que isso
aconteceu foi em 2008, quando o voto jovem se mobilizou de forma decisiva a
favor de Barack Obama. Contudo, naquela era pré -TikTok e de Facebook ainda
incipiente, a mobilização pró-Obama foi física, de corpo a corpo. Nada indica
que o atual frenesi on-line em torno de Kamala não seja apenas isso: um frenesi
on-line. Tiktokeiros não são, necessariamente, eleitores.
Quisera Trump, sobretudo, não ter de
enfrentar Kamala em debates eleitorais. Acabou sua vida mansa de poder olhar
com quase piedade para um Biden alquebrado. Eleita promotora em San Francisco,
procuradora federal da Califórnia e senadora (todos cargos eletivos nos Estados
Unidos), ela foi acumulando experiência em debates, aprendeu a ser cortante
quando preciso e a desmontar contradições. Além do mais, e sobretudo, é mulher,
negra, 19 anos mais jovem e com muito mais cabelo que Trump. Tudo o que ele preferiria
não ter de enfrentar num debate.
Caso ocorra mesmo o confronto agendado para
10 de setembro, Trump procurará explorar o fracasso consumado de Kamala na
única tarefa de relevância que lhe fora dada por Biden na Vice-Presidência:
mergulhar nas raízes e apresentar solução para o maior problema de política
interna da nação, a imigração descontrolada na fronteira com o México. Talvez
também tente ressuscitar a criticada atuação de Kamala no âmbito penal da
Califórnia, quando ela se alinhou à política da época, o encarceramento em
massa, por pequenos delitos, de jovens em geral pobres, pretos e latinos.
Estará pisando em terreno minado, contudo, se buscar confronto em torno de uma
das bandeiras progressistas mais caras a Kamala: a questão das liberdades
reprodutivas para a mulher. Nessa seara, muitas eleitoras e eleitores ainda
indecisos se alinham à bandeira democrata.
Em resumo, a eleição nos Estados Unidos está
começando só agora. Melhor que isso, só mesmo a cerimônia de abertura da
Olimpíada de Paris.
Um alumbramento de fazer esperançar — e rever sempre que duvidarmos da
capacidade humana de criar.
(*) Charli descreve o termo da moda brat como
“alguém com um maço de cigarro, um isqueiro Bic e um top surrado branco sem
sutiã por baixo”, ou “alguém meio bagunça que gosta de festa e fala bobagem de
vez em quando, mas é muito honesto e franco”.
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