Folha de S. Paulo
O feminicídio é problema antigo, mas dele se
falava pouco, fossem as vítimas ou as autoridades
O choque atual parece ter a ver com o fim de
outra forma de violência, o silêncio
Epidemia (do grego "epi-demos") significa literalmente aquilo que incide de forma direta, sem mediações, sobre o povo. Por isso nomeia surtos inesperados de doenças infecciosas em várias regiões. Endemia, por outro lado, é a manifestação desse fenômeno de modo estável. Choque e perplexidade têm levado frações de público a falar de uma "epidemia" de feminicídios e violências contra as mulheres, talvez devido ao aumento extraordinário de casos, mas esse é um mal culturalmente endêmico. Sempre existiu como uma recorrência em graus variáveis, a depender da região.
O choque atual parece ter a ver com o fim de
outra forma de violência,
o silêncio. O problema é antigo, mas dele se falava pouco, fossem as vítimas ou
as autoridades. É possível que fosse menor a avaliação estatística das
ocorrências, porque a mulher se expressava menos, tanto no espaço público
quanto no privado, e, quando podia fazê-lo, sua voz sujeitava-se a restrições e
interrupções pela masculina. Isso não acabou, mas se enfraqueceu. Leis e
movimentos feministas, como o Me Too, ajudaram as mulheres a tomar consciência de que a
violência simbólica do silêncio produz cumplicidade.
Algo semelhante ocorreu quando os negros, até
então objeto de ciência, começaram a articular posições contra o racismo.
Nos anos 1950, um sociólogo espantava-se que quisessem falar de si, assim como
fariam micróbios ao microscópio de um cientista. O bom objeto não berra. Isso
valeria para indígenas e mulheres. A história revelou outra coisa: a emergência
de intelectuais orgânicos da afrodescendência, dos povos originários e da
condição feminina. Histeria, que a psiquiatria restringia às portadoras de útero (hysterion), é hoje a voz masculina
da mídia (Raquel Paiva, em "Histeria na Mídia").
A violência radica na separação absoluta
entre dois termos complementares de uma equação social: capital/trabalho,
natureza/cultura, homem/mulher etc. O mais abstrato impõe-se como lei estrutural. Na dicotomia masculino/feminino, o
patriarcalismo universaliza a submissão da mulher e faz disso política de Estado, como nas ditaduras islâmicas. Nelas
existe posse, mas não amor às mulheres. Ódio à primeira vista de um fio de
cabelo. Por quê? Por medo mítico, primitivo, da diferença.
Medo é a forma negativa do desejo.
Guardadas proporções e variáveis, o fenômeno
se irradia. Num país de forte tradição espiritual como a Índia, são elevados os
índices de estupros e feminicídios.
No Brasil, há quatro feminicídios por dia, mas aqui a polícia e o Judiciário
vêm sendo compelidos a atuar. E já se instituem laboratórios de discussão do
flagelo.
Visto que nada se pode fazer como prevenção,
os diagnósticos confluem para a adoção de punições mais duras, em geral
ineficazes. O que há mesmo é um enorme trabalho educacional a ser feito desde os
primórdios até a formação superior.
No âmago da questão está o lugar de fala: a
voz autônoma da mulher pode desencadear a fúria narcísica do assassinato ou da
agressão mutilante. A negação
machista da palavra feminina já configura o crime perfeito.

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