O debate sobre a boa política inclui a questão de como situar-se diante da apatia. Ela é com frequência associada ao descrédito da política e à corrosão do civismo, de acordo com os princípios de um republicanismo que recomenda o envolvimento em assuntos públicos e a participação política dos cidadãos. Mas ela é também vista, em perspectiva mais propriamente liberal, como o efeito de uma rotinização talvez saudável da democracia. Nesta segunda ótica, não só se torna natural que os assuntos privados ganhem saliência: na verdade, o objetivo principal a ser alcançado com o esforço de institucionalização democrática é o de retirar dramaticidade às disputas da arena política e permitir que se possa ir para casa em paz. E um grau apreciável de apatia costuma ser recomendado como correlato do bom funcionamento da democracia.
Vimos, porém, na semana passada, sugestões de Alessandro Pizzorno que colocam sob luz nova as questões subjacentes, destacando a divergência em torno de fins de longo prazo e o fato de ela associar-se com identidades políticas estáveis: estas seriam as bases necessárias para uma política "séria" e para uma classe política atenta às responsabilidades da representação e pouco propensa à corrupção e ao "profissionalismo" político em sentido negativo, em que a busca do interesse privado predomina desproporcionalmente. Na condição aí entrevista, assim, os fundamentos da dinâmica política, e em particular certos traços da ligação entre representantes e representados, supostamente permitiriam combinar a vigência de princípios éticos com a de componentes ideológicos dados pela referência aos diferentes fins de longo prazo.
Sem a intenção de apego estrito às formulações do próprio Pizzorno, há aqui novos matizes a considerar. Eles podem ser referidos ao que cabe designar como a dimensão "constitucional" do problema político-institucional, em que o grau em que a política mantém sua dramaticidade é conectado ao grau em que o convívio cotidiano dos interesses diversos (ou identidades...) terá encontrado adequada acomodação institucional. Se tomamos a apatia, é claro que podemos distinguir duas formas dela: uma forma "defeituosa", ligada ao obstáculo que os correlatos intelectuais e psicológicos da própria desigualdade social representam à efetiva emergência subjetiva do problema "constitucional" junto aos estratos populares, impedindo até a percepção da relevância da ação política para a realização de objetivos de qualquer natureza (tanto mais de longo prazo); e outra em que a apatia pode ser vista, em medida significativa, como o efeito de certo justificado relaxamento propiciado pela boa construção institucional de alcance social.
É bem claro, nessa visão geral, o que há de torto em pretender erigir o momento da "briga", ou do enfrentamento constitucional mais propenso a envolver turbulência e beligerância, em referência positiva de um ideal de "política ideológica", vista como constituída pela ação de heroicos atores movidos por valores. Mas a perspectiva exemplificada por Pizzorno sugere que a "briga", ao menos como mito, seria necessária como fundamento de identidades amadurecidas que venham a ser politicamente relevantes - e que é igualmente torta e insuficiente a aposta na mera identificação "cívica" com a coletividade abrangente (nacional) que "superasse" as identidades solidárias parciais e surgisse como contraface da difusão de uma postura privatista supostamente saudável. Pois esta periga resultar no profissionalismo enviesadamente "privatista" da própria classe política, precisamente em correspondência com a diluição da relevância política de categorias em cuja definição o sentimento de solidariedade e a ideia da solidariedade como virtude são cruciais. Assim como se pode falar de uma apatia que fica "aquém" da mobilização de significado constitucional e de outra que vai "além" dela, assim também caberia falar de "incivismos" de tipo variado, incluído o inclinado a celebrar uma "cultura cívica".
O "incivismo" brasileiro aparentemente peculiar, que transparece nas manchetes sobre o Congresso Nacional tanto quanto nas pesquisas de opinião pública de amplo alcance internacional, poderia talvez ser atribuído a certa ambivalência quanto a alguns dos aspectos considerados. De um lado, nosso duradouro fosso social faz que muita gente esteja ainda "aquém" de se tornar recrutável para a mobilização política mais ambiciosa e efetiva. De outro lado, dá-se o fato de que o jogo da mobilização "constitucional" - com a longa ditadura de 1964 e a maneira como seu fim se atrelou aos efeitos políticos do colapso mundial do socialismo, da nova economia e da globalização - foi cortado antes que identidades político-partidárias ligadas a objetivos solidários de longo prazo se constituíssem e estabilizassem, sobretudo no eleitorado popular, enquanto, no nível da classe política, o patrimonialismo oligárquico de antes encontra condições de continuidade num "incivismo" de tipo II, o do profissionalismo do interesse privado e do jogo rentista.
Restaria indagar até que ponto seremos mesmo peculiares. Afinal, é especialmente a respeito dos Estados Unidos que há muito se fala da vigência de uma "cultura cívica" tida como virtuosa. No entanto, são os Estados Unidos, sem dúvida, entre os países economicamente avançados, o que deu solução mais precária ao problema constitucional da plena incorporação socioeconômica dos estratos populares, como ilustram o singular desamparo das vítimas mais carentes da crise econômica atual (sem falar dos correlatos da cultura cívica entre as causas mesmas da crise), ou as iniciativas de Obama na área de saúde e as resistências que suscitam ainda agora. Não admira, de outra parte, que a projeção disso no plano político-partidário redunde há tempos em exemplo acabado daquele profissionalismo negativo.
Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais.
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