Como o passaporte de Celso Russomanno parece carimbado para a próxima fase
da eleição municipal, a disputa entra em sua semana decisiva antecipando a
questão dos apoios de segundo turno. Parte da sociedade, inquieta com a
perspectiva de vitória do candidato do PRB, reaviva a memória do "voto
útil"; especula-se quem apoiaria quem ou a quem seria melhor abandonar.
Mas é justo suspeitar que o voto útil, como o conhecemos, esteja relegado ao
passado. Os tempos e atores são outros.
Voto útil foi uma prática que, durante a redemocratização, buscou aglutinar
setores autodenominados progressistas; visava a impedir a vitória eleitoral de
candidatos conservadores. Seu alvo contumaz foi Paulo Maluf. Mas também se
voltou contra Celso Pitta, Fernando Collor e Francisco Rossi. Quando ainda não
havia dois turnos, mirou também Reynaldo de Barros (1982), Jânio Quadros (1985)
e, mais uma vez, Maluf (1988).
Seus beneficiários foram Franco Montoro (1982), Luiza Erundina (1988), Mário
Covas (1994 e 1998), Marta Suplicy (2000) e até Luiz Antônio Fleury (1990).
FHC, Lula e Eduardo Suplicy, em que pesem os esforços, foram derrotados em
1985, 1989 e 1992, respectivamente.
Ninguém foi mais emblemático para a tese do voto útil do que Mário Covas.
Por esse mecanismo, foi eleito duas vezes e foi fundamental no apoio a Lula, em
1989, e a Marta, em 2000. Sua liderança tanto soube atrair apoios para si
quanto conduzir seus eleitores na direção de candidatos de sua escolha, em
segundo turno.
No PSDB, o passamento de Covas marcou o protagonismo de José Serra e Geraldo
Alckmin. Até porque foram adversários frequentes do PT, Serra e Alckmin estão
distantes do perfil, da legitimidade e credibilidade do ex-governador morto.
Excederam na forma e no conteúdo das críticas, passaram do ponto. Nem Aécio
Neves, com sua ascendência tancrediana, parece acrescentar à distensão de momentos
como este - aliás, seria um bom teste. Pontes foram incendiadas, enfim, e não
há volta.
Também no PT a liderança se fragilizou. A proverbial verve provocativa de
Lula nunca contribuiu para somar; além disso, os quadros mais experientes do
partido foram carbonizados pelo mensalão e a proliferação de dossiês e
aloprados aguçou conflitos. Em que pese a eleição de Dilma Rousseff, não houve
consolidação de novas lideranças capazes de reconstruir as pontes. Pelo menos
em São Paulo, os tucanos passaram a ser o inimigo, por definição.
Nesses vazios, a guerra se instalou sem perspectiva de trégua; o
ressentimento é mútuo e infindo. Conjunturalmente, a dramaticidade do
julgamento do mensalão coloca mais lenha na fornalha e José Serra o explora
para estigmatizar Fernando Haddad. Hoje, o desconforto de petistas é tão
natural quanto a intenção de dar o troco no futuro.
Não admira, então, que Marcos Pereira, presidente do PRB, afirme contar com
o apoio de Dilma e Lula, caso o adversário de Russomanno seja José Serra. Mas,
na eventual passagem de Fernando Haddad, o que esperar do PSDB? Ao longo da
eleição, o alvo preferencial de Serra foi Haddad e, especialmente, o PT.
Falou-se muito menos de Russomanno. Não será fácil esquecer o que se disse.
Mais difícil que engolir um sapo é engolir um sapo curtido no ódio.
Para quem nutre esperanças com a tese do voto útil envolvendo PSDB e PT,
melhor será esquecer as lideranças partidárias; elas perderam capacidade de
diálogo e representação. Se algo nesse sentido houver, virá da sociedade, de
bases sociais mais responsáveis que os dirigentes. E, em grande medida, se
confundirá com outras dinâmicas políticas, envolvendo também os conflitos de
interesse entre as religiões e na mídia. Um voto útil de tipo e natureza
distintos do passado: menos cívico, menos laico, menos transparente. Mas
condizente com o caos de referências políticas e partidárias do presente.
* Carlos Melo - cientista político, professor do INSPER
Fonte: O Estado de S. Paulo
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