Por Luiz Zanin
Final da Guerra Civil Espanhola (1936-1939). Com a vitória de Franco, a repressão sobre os adversários do regime fascista se abate com força brutal. Muitos estão na cadeia, esperando pela execução após julgamento sumário. Muitas mulheres, inclusive.
Hortência (Inma Cuesta) é uma delas. Está grávida. O marido encontra-se foragido e participa da Resistência. A irmã de Hortênsia, Pepita (Maria León), a visita na prisão. Hortência, chamada de Tensi, lhe pede um favor, que entregue uma mensagem a alguém, ao marido, no caso, que faz parte da Resistência. E assim, mesmo a contragosto, Pepita, que é apenas uma jovem ingênua e bondosa, entra em contato com os resistentes, que estão sendo dizimados pelos senhores da “nova Espanha”.
Neste assim dito novo país, pratica-se a tortura e o assassinato, sob o silêncio amedrontado (ou cúmplice) da população e o manto protetor da Igreja. Aliás, uma das ênfases mais fortes deste drama do diretor Benito Zambrano é, justamente, a exposição da cumplicidade da Igreja católica espanhola com os crimes do regime de Franco. Tamanho era o ódio aos comunistas, ou a simples opositores, que a Igreja aliou-se alegremente ao fascismo, sem discutir as atrocidades praticadas. Eram para o bem da alma do país. Aliás, pode-se dizer que a Igreja tinha know-how histórico na matéria, dada a violência da Inquisição na Espanha. De acordo com o filme de Zambrano, baseado em registros históricos, a Igreja não apenas calava diante dos crimes, como ajudava a cometê-los. Participava de forma ativa na organização dos presídios, por exemplo, e não exatamente para levar conforto espiritual aos presos.
Com essa história, baseada no livro de Dulce Chacón, (1954-2003), Zambrano constrói um drama sólido. Em sua primeira parte, o filme chega a ser brilhante ao mesclar a seriedade da situação com o humor da personagem Pepita (Maria León ganhou o prêmio Goya pela interpretação). Ela é quem dá o tom desenvolto da Espanha profunda, a voz andaluza, cheia de graça e sonoridade. É um prazer vê-la em cena.
Na segunda parte, com a intensificação do tom dramático, o clima torna-se muito mais pesado e opressivo. Não há mais espaço para ligeireza ou gracejos, mas, dado o tema, como poderia ser diferente? O que entra em cena é a barbárie, e Zambrano a mostra sem ser, por isso, sensacionalista ou vulgar. A figura do martírio é Hortência, sempre de cabeça erguida, mesmo diante dos carrascos. Quando lhe perguntam que país deseja para o filho que leva no ventre, responde, sem titubear: “Uma Espanha livre de caudilhos e de padres”.
O desfecho é muito emocionante e cala fundo na plateia. Sem discutir de modo exaustivo a questão política, A Voz Adormecida concentra-se no aspecto humano da tragédia do povo espanhol. Há quem compare A Voz Adormecida a Terra e Liberdade, de Ken Loach. Mas existem diferenças profundas entre um e outro. Loach concentra-se no tempo da luta. Toca em ponto polêmico, a divisão da esquerda durante a Guerra Civil. Guerra, aliás, que rendeu toda uma filmografia, constituindo quase um gênero cinematográfico, com filmes de sucesso, como o romântico Por Quem os Sinos Dobram (1943), de Sam Wood, com Gary Cooper e Ingrid Bergman, versão um tanto açucarada do romance de Ernest Hemingway. Ou o recente O Labirinto do Fauno (2006), de Guillermo del Toro, que aborda o período sob a ótica do realismo mágico.
A Voz Adormecida é diferente de todos eles. Apega-se ao drama humano, denuncia a cumplicidade da Igreja, e coloca o foco na bravura das mulheres que participaram da guerra e foram dizimadas. Conta com uma direção sóbria de atores, mas que valoriza o frescor das interpretações, como já se disse a propósito de Maria León. O registro fotográfico é nuançado e torna-se denso em especial nas cenas de prisão. Obra de época, de um período turvo da história contemporânea, não se rende ao academicismo, essa doença infantil do realismo. Tem dinâmica. Tem corpo, alma e um ponto de vista definido. Belíssimo filme.
Fonte: Caderno 2 / O Estado de S. Paulo
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