- Folha de S. Paulo
Antonio Palocci está na cadeia. Há 11 anos, à frente do Ministério da Fazenda, ele apresentou a proposta de uma política fiscal contracíclica, que faria a curva do gasto público declinar (em relação ao PIB) nas fases de expansão econômica e crescer nas de recessão.
"Despesa corrente é vida", retrucou a então chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff, crismando como "rudimentar" a ideia de ancorar a trajetória dos gastos na morfologia do ciclo econômico. A colisão no núcleo do governo Lula opunha a política à demagogia. A PEC do Teto, uma resposta ao triunfo da segunda, implica a restauração da primeira.
A divergência entre as curvas do PIB e do gasto público começou no outono do regime militar, acentuando-se com o pacto da redemocratização. Desde 1980, as despesas aumentam, quase incessantemente, em ritmo mais acelerado que o do PIB. No início, financiou-se a cisão insustentável pela emissão de dinheiro, um expediente não negociado politicamente que desaguou na hiperinflação. Mais tarde, com o Plano Real, adotou-se a solução pactuada de ampliação da carga tributária. Finalmente, no primeiro mandato de Dilma, face à impossibilidade política de elevar ainda mais os impostos, o governo decidiu preservar as sacrossantas despesas pelo recurso a uma nova saída não negociada: o crescente endividamento público.
A demagogia ganhou, então, uma auréola virtuosa, fantasiando-se como teoria: "Nova Matriz Econômica". O reino da Cocanha, um mito de raízes medievais, é a terra de abundância e prazeres na qual nenhum desejo será interditado.
Na Cocanha dilmista, a riqueza pública ilimitada propiciaria o atendimento simultâneo de todas as demandas. Podíamos elevar os proventos dos magistrados e aumentar o salário mínimo, erguer as arenas da Copa e construir hospitais, sustentar o crescimento inercial dos dispêndios previdenciários e ampliar os recursos destinados à Educação, garantir tanto o Bolsa-Empresário quanto o Bolsa-Família. A PEC do Teto surge do tardio reconhecimento de que a Cocanha só existe no mundo da utopia.
A política substitui a politicagem quando termina a demagogia. Na disjunção entre uma e outra, nasce um elemento fundamental das democracias: o Orçamento. Sob o paradigma demagógico do endividamento sem limites, como sob a inflação descontrolada, a previsão orçamentária é uma peça ficcional, fabricada por atos rituais do Executivo e do Congresso.
A PEC do Teto estabelece parâmetros políticos para a produção do Orçamento, impondo o debate sobre as prioridades nacionais. Se a riqueza não é infinita, precisamos escolher entre diversas demandas, atribuindo valor a cada uma delas. Política é isso: decidir, pacificamente, entre interesses legítimos conflitantes.
Os inimigos da PEC recusam-se a abandonar o ninho quente da demagogia para levar seus argumentos à áspera praça da política. A discórdia de fundo repousa na forma como se define a sociedade. Os demagogos não enxergam a sociedade como uma comunidade contratual de indivíduos, mas como uma coleção de corporações demandantes -e prometem realizar as vontades delas todas, começando pelas mais articuladas e barulhentas.
A virulenta reação à PEC do Teto evidencia a extensão da derrota sofrida pelos demagogos: eles não perdem uma batalha singular, mas o privilégio de borrar as regras do jogo político.
Nada, na PEC do Teto, autoriza a conclusão de que serão cortados os recursos da Educação ou da Saúde. A PEC tão difamada apenas explicita o conflito distributivo, suprimindo a crença na infinitude de recursos. De agora em diante, a alocação dos gastos públicos dependerá do jogo político.
No fim das contas, os demagogos que clamam contra a "PEC do fim do mundo" têm uma certa razão: a limitação dos gastos implode o reino da Cocanha, esse estranho mundo destinado a consumir-se na falência do Estado.
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