Por Monica Gugliano | Valor Econômico
SÃO PAULO - Com a experiência de quem presidiu o Supremo Tribunal Federal (STF) e conhece o volume de ações que chegam à essa instância, o ex-ministro Carlos Velloso, de 81 anos, afirma que a corte não terá condições de julgar os processos que podem resultar da Operação Lava-Jato. Segundo ele, ainda que o Supremo se transformasse em um tribunal criminal e se dedicasse exclusivamente, por muitos anos, a esses processos - abandonando a função que lhe é atribuída pela Constituição -, não haveria meios para concluir essa gigantesca tarefa. "É por isso que devemos acabar com essa excrescência do foro privilegiado, cuja única função, até agora, tem sido a de não punir as autoridades que praticam crimes", afirma Velloso nesta entrevista ao Valor.
Valor: Pode haver alguma chance de os políticos acabarem com o foro privilegiado?
Carlos Velloso: Se depender deles, o foro nunca vai acabar. Muitos, inclusive, dizem que ele surgiu na Constituição de 88, como forma de proteção. Não foi. O foro privilegiado é antirrepublicano e veio na Emenda nº 1 de 1969, editada pela Junta Militar. Até então isso não era conhecido, e hoje podemos dizer que é uma medida prejudicial à sociedade. Ao passar esses julgamentos ao STF, que não tem essa função, são prejudicados até os inocentes. Os processos nunca terminam, e até que haja uma sentença, as pessoas que não cometeram crimes têm que carregar essa pecha.
Valor: Boa parte dos pedidos de investigação liberados pelo relator da Lava-Jato no STF, o ministro Edson Fachin, se refere à prática de caixa dois, um crime que está em debate entre as dez medidas contra a corrupção. Muitos dizem que se o caixa dois for tipificado, aqueles que o praticaram antes da aprovação do projeto podem ser anistiados. Isso é possível?
Velloso: Não. Caixa dois é um crime. A prática implica o uso eleitoral de dinheiro, atividades voluntárias ou bens não devidamente contabilizados nem declarados à Justiça Eleitoral, mesmo se tratando de valores originariamente lícitos. O artigo 350 do Código Eleitoral permite a responsabilização penal do praticante de caixa dois. A tipificação não abolirá o crime de falsidade ideológica eleitoral.
Valor: Muitos políticos, hoje, falam que há diversas categorias de caixa dois e que somente o fato de declarar uma quantia inferior à recebida não é suficiente para afirmar que houve crime....
Velloso: Isso não existe. Se o sujeito recebeu, por exemplo, R$ 500 mil e declarou R$ 250 mil, cometeu um crime. É uma declaração falsa, portanto sujeita às penas da lei de reclusão de até cinco anos e pagamento de 5 a 15 dias-multa, se o documento é público, e reclusão de até três anos e pagamento de 3 a 10 dias-multa se o documento é particular.
Valor: E como se diferencia esse caixa dois, que, segundo muitos políticos, não seria proveniente de recursos ilícitos da outra forma, que provém de recursos desviados em obras etc?
Velloso: Comete-se outro crime. O sujeito, além de receber recursos e não declarar, ainda recebe dinheiro proveniente de alguma troca de favores. O que aconteceu nesse caso? O sujeito combina uma propina. Presta algum benefício ao doador, que retribuiu com esse pagamento. Foi o que aconteceu na Petrobras e que já foi comprovado, julgado e condenado. Eram arranjados contratos com a companhia e, em troca, os empresários pagavam um percentual aos políticos.
Valor: E se o político declarar esse valor? Aí não existiu o caixa dois?
Velloso: Ainda assim, se for comprovado, ele recebeu propina e o pagamento foi feito com recursos ilícitos.
Valor: Por isso também foram criados esses esquemas de lavagem de dinheiro?
Velloso: Sim. Como é que o sujeito vai justificar o dinheiro que recebeu da propina? Não tem como. Então precisa lavar. Temos na Lava-Jato diversos tipos de "lavanderias". Muitos compraram joias, imóveis sem nota fiscal ou com valores abaixo do real. Tudo isso é também corrupção ativa e passiva. Foram recebidos recursos ilícitos como pagamento por serviços também ilícitos.
Valor: Como o senhor acha que será possível sair dessa crise?
Velloso: Dependemos da classe política. Se sairmos disso sem a classe política, partiremos para uma ditadura. Vale lembrar, como disse Winston Churchill [1874-1965, primeiro-ministro britânico], que a democracia é a pior das formas de governo, à exceção de todas as outras.
Valor: O senhor acha que, diante desse cenário, os partidos vão levar a sério a tarefa de fazer a reforma política?
Velloso: Espero que sim. Nossas instituições - ainda que com alguns desvios de rota - estão funcionando.
Valor: Quais pontos são imprescindíveis em uma reforma política?
Velloso: Não é preciso muita coisa. Temos que acabar com o sistema proporcional, e eu defendo o sistema distrital majoritário. É imprescindível termos uma cláusula de barreiras e fazermos a reforma partidária.
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