O Estado de S. Paulo
Vendo sua margem de manobra se estreitar,
ele parece cada vez mais desesperado
É um certo desperdício usar um pensamento
de Isaac Deutscher para analisar a extrema direita. Mas, como ele dizia, cada
vez que a margem de manobra política se estreita as pessoas começam a fazer
bobagens, independentemente até de seu nível de inteligência.
A extrema direita mundial vive um momento
difícil. Eslovênia, Hungria, Polônia e agora o Brasil, todos estão às voltas
com uma conjuntura negativa. E de certa forma o fracasso diante da pandemia foi
fator decisivo nas eleições americanas, contribuindo para a derrota de Donald
Trump.
Na Eslovênia cai a popularidade do governo,
na Hungria forma-se uma ampla coalizão contra Viktor Orbán e na Polônia o
governo está sendo empurrado para posições mais à esquerda.
Aqui, no Brasil, Bolsonaro está com toda a carga negativa sobre ele. Não conseguiu atender às frustrações sociais que o levaram ao governo, tornou-se órfão de Trump e realizou uma política letal no campo sanitário. O País não só ultrapassou os 500 mil mortos, como deve superar os Estados Unidos nessa contagem fúnebre.
Bolsonaro já não é muito hábil
politicamente. Mas vendo sua margem de manobra se estreitar parece cada vez
mais desesperado, a ponto de agredir verbalmente jovens repórteres no exercício
de sua função.
O avanço da CPI da pandemia tem
representado também uma grande derrota para a tese negacionista de Bolsonaro.
Aos poucos vai se definindo algo que para alguns já foi obviamente demonstrado:
a política do governo contribuiu para muitas mortes no País.
Outro fator de estreitamento são as
próprias alianças políticas. O grupo que o apoia no Parlamento sabe explorar o
espaço, aberto pelo início das grandes manifestações populares contra ele.
Ainda não o suficiente para derrubá-lo, elas já representam importante
agregação de valor ao apoio fisiológico: quanto mais gente na rua, mais cara se
torna a amizade com o Centrão.
O mundo que o bolsonarismo encontrou ao
chegar ao poder não mudou para melhor, ao contrário, as frustrações se
aprofundam. Grande parte da juventude brasileira, por falta de horizonte, quer
deixar o País. Isso significa que as possibilidades de derrota de Bolsonaro são
grandes, mas algumas das causas que o levaram ao poder não foram removidas.
Assim como lá fora surgem alianças às vezes
surpreendentes, como a de Israel e agora a da Hungria, aqui, no Brasil, a
possibilidade de unificação do campo oposicionista também é, potencialmente,
considerável. Em primeiro lugar, as próprias manifestações de rua, no seu
crescimento, precisam atrair novas forças de oposição, ganhar uma cara de
unidade nacional que transcende o poder da esquerda. Em segundo lugar, está o
próprio futuro pós-Bolsonaro. Seria razoável enfrentá-lo sem levar em conta os
mecanismos que impulsionaram sua ascensão?
Algumas dessas frustrações já estavam
latentes no grande movimento popular de 2013. Ele é certamente interpretado de
muitas maneiras. Mas havia nele um certo descontentamento diante dos serviços
públicos, muito aquém da expectativa dos pagadores de impostos.
Depois de uma vitória nacional, a extrema
direita não vai desaparecer. Provavelmente será reduzida a uma dimensão mais
real, uma força minoritária, ainda que ruidosa.
Sempre haverá, daqui para diante, a
compreensão de que ela não pode ganhar o governo, o que determina uniões
republicanas, como na França, prontas para derrotá-la caso chegue ao segundo
turno.
Derrotá-las nas urnas, porém, não vai
resolver o problema. É necessário buscar uma estabilidade dificilmente ao
alcance de uma força política única.
Collor não tinha partido, assim como
Bolsonaro. Os presidentes que tinham partidos atrás de si acabaram tendo de
fazer coalizões que trazem uma falsa estabilidade, uma vez que garantem votos,
mas arruínam a legitimidade diante da opinião pública.
Programa e instrumento adequado de governo
são temas ainda indefinidos na era pós-Bolsonaro. Não creio que seja algo muito
extemporâneo. Na medida em que cresce a oposição a Bolsonaro, certamente são
questões importantes. O interessante ao concluir um período como esse seria
iniciar um grande estudo não só dessas, mas de todas as grandes questões que
nos possam dar uma sensação de caminhar para a frente, sem esbarrar de novo
nesse fantasma regressivo e autoritário que assombra a nossa História
contemporânea.
Apesar do sofrimento humano e da devastação
ambiental, a ascensão de Bolsonaro é também um período de aprendizado. Supor
que vamos simplesmente voltar ao período anterior a ele, como se nada tivesse
acontecido, é muito perigoso, pois pode nos trazer Bolsonaro de novo, ou alguma
composição ainda pior que ele, por mais absurda que possa parecer essa
hipótese.
Tudo isso tem um sentido maior, porque não estaremos concluindo apenas um período político. Estaremos vivendo um momento pós-pandemia. Não me lembro historicamente de outro tão estimulante como o pós-guerra na Europa. Muitas certezas cairão por terra, novas ideias afloram, seria um certo contrassenso reiniciar com fórmulas que já não respondem ao desafio do presente.
Nenhum comentário:
Postar um comentário