sexta-feira, 25 de junho de 2021

José de Souza Martins* - A consciência da corrupção

Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

No Brasil, o governante corrupto é revestido de uma aura de quem está acima da materialidade cotidiana da vida

Em 2022, ocorrerá o 370º aniversário da publicação da “Arte de Furtar”, obra-prima do Padre Antonio Vieira, “Zeloso da Pátria”, como ele assinou. O livro é dedicado a dom João IV, duque de Bragança, restaurador do trono de Portugal após os 80 anos da dominação espanhola dos reis Filipes. Vieira nasceu em Portugal, foi missionário no Brasil e no Brasil morreu.

O duque de Bragança era um homem culto. Fino compositor. Autor da conhecida “Adeste Fidelis”, música natalina até hoje cantada em todo o mundo cristão. Compôs também “Crux Fidelis”, ainda nos tempos atuais cantada nas cerimônias da Semana Santa celebradas na bela e monumental capela gótica vertical do King’s College, em Cambridge, na Inglaterra.

Não é dos batedores de carteira que trata a “Arte de Furtar”. É dos que se valem do poder político para meter a mão no que não lhes pertence. O livro é uma antecipação de tratado de sociologia da corrupção. Para que a conduta desonesta seja desvendada, sugere o autor atenção às máscaras. Um tema bem sociológico.

O corrupto político é também ator da arte política de parecer honesto quando não o é. Para desvelar a corrupção, não basta, pois, seguir o dinheiro, como se diz por aqui. É preciso descobrir do que é que se fingem os corruptos para parecer patriotas e santos. O verde e amarelo pode esconder muita coisa que não é verde-amarela. Repetir versículos bíblicos não santifica quem o faz.

É por aí que se pode saber quem são os mascarados. O mensalão e a Operação Lava-Jato mostraram algumas artimanhas do mascaramento, a incrível trama desse modo de fazer o teatro do poder.

Diferentemente do que o homem comum e ingênuo supõe, o corrupto não é, propriamente, um bandido, um assaltante que, de mão armada, toma de outro aquilo a que não tem direito. Sua arma é a arte do fingimento. O eleitor-vítima é coadjuvante desse teatro.

Cem anos depois do Padre Vieira, na Inglaterra, um banqueiro, John Mortlock (1755-1816), tinha um conceito profissional para o que os leigos definiam como corrupção: “O que vocês chamam corrupção, eu chamo influência”. Mortlock morreu santamente e está sepultado numa pequena igreja próxima da casa em que morou e onde estabeleceu seu banco, em Cambridge. Além de banqueiro, ele foi membro do Parlamento e 13 vezes prefeito da cidade.

Aqui, também, corruptos têm um sistema conceitual para parecer honestos. Já tivemos governantes publicamente reconhecidos como corruptos que, não obstante, se reelegeram várias vezes para funções públicas de relevo. O cinismo popular justificou-os com o “rouba, mas faz”. Corrupção econômica e mentira sanitária são aqui técnicas políticas necessárias ao exercício do poder. Fazem parte do mesmo imaginário.

Considerar-se o governante tolhido no governo pelas instituições para justificar a corrupção é um meio de obter a cumplicidade e a admiração do povo. De vários modos, o povo é no Brasil um povo-capanga.

Nossa concepção popular de corrupção é ingênua. Quando um dos nossos presidentes da República foi cassado e teve que deixar o Palácio, alguém da multidão que contemplava a cena gritou: “Revista ele”. Como se ele estivesse saindo do governo com os bolsos cheios.

A corrupção é invisível. Em países atrasados como o nosso, não temos a menor ideia de como e por onde o dinheiro sujo passeia até se tornar dinheiro “limpo”. Os casos de dinheiro na cueca, na meia, são casos de amadores, principiantes, ridículos aprendizes a serviço de corruptos profissionais.

O corrupto rouba muito mais do que dinheiro. Ele rouba a verdade das relações de poder. Ele não mente para fazer isso. Suas histórias plausíveis são verdades teatrais. Por isso Vieira fala na “Arte de Furtar”. Arte porque é uma construção, uma elaboração que envolve cultura e discernimento.

O corrupto tem que se apropriar do alheio, isto é, do que é da sociedade, de todos, mas tem que dar a impressão de que está a favor ao povo. Esse se apropriar não é necessariamente o se apropriar do dinheiro público.

É corrupção usar o dinheiro público no que não deveria ser usado, fazendo parecer que o uso errado, antissocial, desse dinheiro foi um uso correto, empregado segundo o suposto bom senso do governante.

No Brasil, somos useiros e vezeiros em acreditar que os governantes são dotados de um discernimento que ninguém mais tem e que por isso o que fazem é invariavelmente honesto. Mesmo o governante corrupto é revestido de uma aura de quem está acima da materialidade cotidiana da vida. A corrupção é aqui tida como um direito divino dos reis, isto é, dos poderosos. Mesmos os honestos são, por isso, tidos como corruptos. E a corrupção interpretada como sendo o próprio poder. É o poder que corrompe.

*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Simon Bolivar Professor (Cambridge, 1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de "Moleque de Fábrica" (Ateliê).

 

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