Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
No Brasil, o governante corrupto é
revestido de uma aura de quem está acima da materialidade cotidiana da vida
Em 2022, ocorrerá o 370º aniversário da
publicação da “Arte de Furtar”, obra-prima do Padre Antonio Vieira, “Zeloso da
Pátria”, como ele assinou. O livro é dedicado a dom João IV, duque de Bragança,
restaurador do trono de Portugal após os 80 anos da dominação espanhola dos
reis Filipes. Vieira nasceu em Portugal, foi missionário no Brasil e no Brasil
morreu.
O duque de Bragança era um homem culto.
Fino compositor. Autor da conhecida “Adeste Fidelis”, música natalina até hoje
cantada em todo o mundo cristão. Compôs também “Crux Fidelis”, ainda nos tempos
atuais cantada nas cerimônias da Semana Santa celebradas na bela e monumental
capela gótica vertical do King’s College, em Cambridge, na Inglaterra.
Não é dos batedores de carteira que trata a
“Arte de Furtar”. É dos que se valem do poder político para meter a mão no que
não lhes pertence. O livro é uma antecipação de tratado de sociologia da
corrupção. Para que a conduta desonesta seja desvendada, sugere o autor atenção
às máscaras. Um tema bem sociológico.
O corrupto político é também ator da arte política de parecer honesto quando não o é. Para desvelar a corrupção, não basta, pois, seguir o dinheiro, como se diz por aqui. É preciso descobrir do que é que se fingem os corruptos para parecer patriotas e santos. O verde e amarelo pode esconder muita coisa que não é verde-amarela. Repetir versículos bíblicos não santifica quem o faz.
É por aí que se pode saber quem são os
mascarados. O mensalão e a Operação Lava-Jato mostraram algumas artimanhas do
mascaramento, a incrível trama desse modo de fazer o teatro do poder.
Diferentemente do que o homem comum e
ingênuo supõe, o corrupto não é, propriamente, um bandido, um assaltante que,
de mão armada, toma de outro aquilo a que não tem direito. Sua arma é a arte do
fingimento. O eleitor-vítima é coadjuvante desse teatro.
Cem anos depois do Padre Vieira, na
Inglaterra, um banqueiro, John Mortlock (1755-1816), tinha um conceito
profissional para o que os leigos definiam como corrupção: “O que vocês chamam
corrupção, eu chamo influência”. Mortlock morreu santamente e está sepultado
numa pequena igreja próxima da casa em que morou e onde estabeleceu seu banco,
em Cambridge. Além de banqueiro, ele foi membro do Parlamento e 13 vezes
prefeito da cidade.
Aqui, também, corruptos têm um sistema
conceitual para parecer honestos. Já tivemos governantes publicamente
reconhecidos como corruptos que, não obstante, se reelegeram várias vezes para
funções públicas de relevo. O cinismo popular justificou-os com o “rouba, mas
faz”. Corrupção econômica e mentira sanitária são aqui técnicas políticas
necessárias ao exercício do poder. Fazem parte do mesmo imaginário.
Considerar-se o governante tolhido no
governo pelas instituições para justificar a corrupção é um meio de obter a
cumplicidade e a admiração do povo. De vários modos, o povo é no Brasil um
povo-capanga.
Nossa concepção popular de corrupção é
ingênua. Quando um dos nossos presidentes da República foi cassado e teve que
deixar o Palácio, alguém da multidão que contemplava a cena gritou: “Revista
ele”. Como se ele estivesse saindo do governo com os bolsos cheios.
A corrupção é invisível. Em países
atrasados como o nosso, não temos a menor ideia de como e por onde o dinheiro
sujo passeia até se tornar dinheiro “limpo”. Os casos de dinheiro na cueca, na
meia, são casos de amadores, principiantes, ridículos aprendizes a serviço de
corruptos profissionais.
O corrupto rouba muito mais do que
dinheiro. Ele rouba a verdade das relações de poder. Ele não mente para fazer
isso. Suas histórias plausíveis são verdades teatrais. Por isso Vieira fala na
“Arte de Furtar”. Arte porque é uma construção, uma elaboração que envolve
cultura e discernimento.
O corrupto tem que se apropriar do alheio,
isto é, do que é da sociedade, de todos, mas tem que dar a impressão de que
está a favor ao povo. Esse se apropriar não é necessariamente o se apropriar do
dinheiro público.
É corrupção usar o dinheiro público no que
não deveria ser usado, fazendo parecer que o uso errado, antissocial, desse
dinheiro foi um uso correto, empregado segundo o suposto bom senso do governante.
No Brasil, somos useiros e vezeiros em
acreditar que os governantes são dotados de um discernimento que ninguém mais
tem e que por isso o que fazem é invariavelmente honesto. Mesmo o governante
corrupto é revestido de uma aura de quem está acima da materialidade cotidiana
da vida. A corrupção é aqui tida como um direito divino dos reis, isto é, dos
poderosos. Mesmos os honestos são, por isso, tidos como corruptos. E a
corrupção interpretada como sendo o próprio poder. É o poder que corrompe.
*José de Souza Martins é
sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Simon Bolivar
Professor (Cambridge, 1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia
Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de "Moleque de Fábrica"
(Ateliê).
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