O Estado de S. Paulo / O Globo
Descobrir sobre o que escrever é a dúvida
letal dos que vivem escrevendo e escrevem para viver
Depois de exatas quatro semanas fora dos
jornais, e com inevitáveis e bem-vindos 85 anos, volto a enfrentar o doloroso
infinito dos assuntos, pois cada crônica é uma resposta ao sobre o que
escrever.
A escrita como dimensão básica da linguagem humana (escreveu, não leu, o pau comeu!) permite armazenar o mundo. Nasceu, dizem, na Suméria, e tem sido essencial na fabricação de mandamentos e cláusulas pétreas, essas normas doadas por deuses, reis e juristas para os mortais - de cima para baixo, de fora para dentro. A escrita inventa a linearidade histórica e estampa as notícias desse jornal. Um dos seus mistérios: nos dar uma consciência da língua portuguesa e, com ela, de nós mesmos. A língua, como dizia Fernando Pessoa, é solo e pátria. Somos nós que a falamos ou é ela que fala por nós?
*
Descobrir sobre o que escrever é a dúvida
letal dos que vivem escrevendo e escrevem para viver. A literatura não admite
diletantes quando reinventa a vida conforme reza o código de honra dos autores.
Sentado, pois, diante da tela-papel do meu
computador, me confronto com uma consciência pintada de branco. Esse “branco”
que qualifica a impotência dos que se sabem inventados e inventores por um
idioma. Esse bando de contadores de histórias que ajudam a ver a nossa maior
contradição: o de poder escrever sobre tudo, exceto sobre a nossa morte. Talvez
a glória do ato de escrever esteja na sensação de morrer quando o texto termina
e de reviver quando começamos uma crônica - um episódio que engane o peso de
estarmos todos a um passo da eternidade e do esquecimento. Essa inexorabilidade
que os estúpidos nem sequer cogitam, mas que - com o perdão do trocadilho - na
sua verdade mortal constitui um brutal desafio porque sabemos muito do morto,
mas nada da morte. Ela que, vejam o tamanho da cambalhota, iremos viver ao
morrer.
Não é por acaso que a virgindade da morte
seja o estímulo para a especulação intelectual.
*
Morreu José Arthur Gianotti, um exemplar
filósofo na casa de quem, um dia, jantei excelentes bifes tártaros, sua
especialidade culinária, com Ruth Cardoso e Eunice Durham. Sua frase mais
célebre ocorreu no governo de FHC, de quem foi amigo: “Nunca pensei que meus
colegas detestassem tanto a profissão que escolheram”, desabafou.
A advertência revela a decepção com o
sistema universitário. Mas sabemos como é difícil resistir ao patriótico
chamado do Brasil em nome do qual tudo é permitido.
Ademais, conforme descobri quando menino,
se o dinheiro é de todos, é lógico que os seus administradores e delegados,
enganosamente chamados de “representantes”, tenham o direito legal de
distribuí-lo para seus parentes e “bases”. Se assim não for, outros irão
fazê-lo, pois roubar é crime somente para os comuns. Para os eleitos, o assalto
moleque aos recursos públicos vale até na pandemia.
Aliás, como não “arrumar-se” se há uma
imutável legislação desenhada para privilegiar os “defensores do povo” que
viram barões, reis (e “mito”) protegidos por uma legislação que os cobre de
privilégios? - de leis particulares que os isenta de culpa?
Nesse “Estado-Casa-Grande” de um Brasil que
experimentou todos os regimes políticos, só evitamos cuidadosamente uma
representação mais igualitária e menos familística e sectária.
Uma representatividade capenga, conforme
viram Joaquim Nabuco, Antonio Paim, Raymundo Faoro e alguns outros, tem
engendrado partidos que representam a si mesmos. E, pasmem, como mostra José
Paulo Cavalcanti Filho num artigo publicado no Jornal do Comércio, de
Recife, há um bilionário “fundo partidário” pronto a consagrar novos
aristocratas.
*
Sem assunto, lembro-me de uma fórmula
conhecida dos jornalistas americanos que me foi enviada pelo correspondente Mac
Margolis:
“O que causa ansiedade em escritores: não
escrever/ escrever. Quem lê o que escrevem. Rever o que escrevem/não rever o
que escreveram. Não ter boas ideias/ter muitas ideias, mas não ser capaz de
decidir escrevê-las. Ter uma grande ideia e preocupar-se que ela não é boa o
suficiente para escrevê-la. Não ter tempo para escrever/ter tempo para
escrever. Não ser resenhado/ receber 999 resenhas e uma daquele f.d.p. que
disse que o título do que foi escrito era muito grande.”
*
No Japão, a Olimpíada produz mil assuntos.
O esporte desmancha campeões e hierarquias. Ele produz novos heróis e eventos a
partir de estruturas. Num sentido preciso, o esporte desafia e transtorna raças
e tipos. Nele, não há recursos legais, nem segundas instâncias. Seu ideal de
igualdade é o oposto do que ocorre na vida política nacional.
Belo assunto para uma coluna, mas, como diria Kipling, isso é uma outra história...
*É antropólogo social e escritor, autor de ‘Fila e Democracia’
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