A
prerrogativa de privatização da informação sobre eventos
públicos, inclusive de imagens, apropriada empresarialmente, tem sido
silenciosamente desqualificada pela ação do cidadão comum. A televisão vem
resistindo por causa do confinamento generalizado. As tiragens dos jornais caem
sistematicamente e o rádio parece até que deixou de existir.
O
novo concorrente desse jornalismo batizado como profissional é a
"cobertura alternativa digital” - o cidadão comum
transmitindo direta e naturalmente a informação pelos meios domésticos
(celular), como se estivesse contando um caso numa roda de amigos. É mais que
isso: é o acesso livre à informação. Entende-se que a informação
jornalística é cheia de vícios.
Até os Jogos Olímpicos de Atenas (2004), a cobertura jornalística era feita única e exclusivamente pelos meios de comunicação convencionais que, monopolisticamente, adquiriam os direitos de transmissão e os revendiam para outras empresas de mídia. O credenciamento de um repórter custava US$ 1.000. Na Grécia, o Comitê Olímpico Internacional (COI) aceitou credenciar, pela primeira vez, a mídia digital, sob intensa resistência da mídia convencional. Na esteira da flexibilização, a Universidade Católica de Brasília (UCB) inaugurou, com estudantes de jornalismo, uma cobertura jornalística alternativa, puramente pedagógica.
Como
os estudantes da Católica não tinham aquele dinheiro, nem a sua cobertura
ameaçava a hegemonia da grande mídia, os projetos ganharam credenciamentos para
a cobertura alternativa. A experiência ainda foi analógica. Contava
com o apoio do jornal Correio Braziliense, da TV Record, da
Radiobras e de mais onze jornais de sete Estados. Mas, na
Grécia, os irmãos maristas, que acolheram o grupo de Brasília, haviam montado,
no colégio Lyceé Patyssia, para os estudantes da Católica, um laboratório
digital. Ali foram editadas matérias exclusivas que chegaram a ser reproduzidas
pelas grandes empresas de mídia do Brasil. A experiência mereceu atenção da
própria mídia helênica.
Os
feitos foram repetidos em Pequim (2008), com o Jornal de Brasília e uma janela
aberta pela Radiobras na sua página para a informação alternativa digital. Já
nos Jogos de Londres (2012), os estudantes, ligados ao projeto LondonBridge, fizeram
uma cobertura totalmente digitalizada. A reprodução do material foi ampla,
e perdeu-se o controle.
Agora,
nos Jogos de Tóquio os alternativos estão na rua, nas redes, dentro dos
estádios, nos alojamentos dos atletas, nos restaurantes, nos bares e até,
clandestinos, nos vestiários captando imagens prévias, descrevendo o ambiente e
a tensão dos atletas antes das provas. O aparato de segurança não consegue
controlar a ação do que chamaria de “repórteres cidadãos digitais” (RCD), cujas
matérias não entram na televisão das grandes empresas, mas alcançam os
telefones celulares de milhares e milhões mesmo em qualquer lugar no mundo.
Na cerimônia
de abertura da Olimpíada de Tóquio, no dia 23 de julho, no
Estádio Olímpico de Tóquio, apareceu por lá um jovem dos seus 20 a 25
anos, munido de um equipamento mínimo, propondo-se a fazer uma cobertura
alternativa para ele mesmo, como se fosse um profissional. Não teve polícia que
o interrompesse. Logo alcançou uma audiência de 20 mil seguidores.
Era um brasileiro.
Ele
registrou os protestos comunitários contra a realização dos Jogos no Japão por
causa da pandemia, reprimidos como se fosse uma rebelião. A mídia estava do
lado de dentro do estádio, assistindo ao desfile das delegações. A
cobertura alternativa externa era transmitida via internet e se
reproduzia naturalmente em rede. Os compartilhamentos traziam também
informações fornecidas pela audiência presente aos eventos.
Eu
e meu colega, professor Paulo Trindade, cobrimos os Jogos de Atenas, Pequim e
Londres. Neste último a cobertura já era totalmente digital. Conseguir o
credenciamento em Londres foi muito difícil, porque, renitentes, os
coordenadores de mídia exigiam nomes de empresas, equipamentos à mostra e
registros profissionais. Eram todos universitários. Faziam parte de um projeto
pedagógico. O COI não reconhece a categoria. Mas o grupo era de alto nível:
dominava não apenas as novas tecnologias, como falava línguas, alguns
com a precisão dos nativos.
Em
Atenas, chegamos ao cúmulo de ter uma âncora digital, holográfica (Atena
Politeia), que falava dezenas de idiomas. Descobrimos, ainda aqui, na
Universidade, que o domínio das novas tecnologias, o conhecimento da
cultura olímpica e o falar línguas estrangeiras eram fundamentais para o
relacionamento olímpico. Nosso grupo falava e escrevia em seis idiomas. Para ir
a Atenas, passou-se um ano estudando grego moderno, francês e inglês. O mesmo
aconteceu em relação a Pequim. Estudamos o mandarim. Em
Tóquio, assisti, semana passada, pela internet, um rapaz noticiando
sozinho, em seis línguas, para canais de tv estrangeiros.
As
grandes empresas de mídia que vivem de privatizar a informação pública estão
preocupadas. Ambiguamente, a Federação Nacional dos Jornalistas (FENAJ)
realiza, neste momento, um congresso nacional, no qual pede a taxação das
grandes plataformas digitais e a criação de um Fundo de Apoio para a
atividade jornalística, mantido por um imposto especial. Ao mesmo
tempo, preocupa-se em configurar uma Plataforma Mundial de Jornalismo de
Qualidade.
A
resposta às verdades atravessadas no jornalismo pelas fake news, pelos interesses
privados e políticos sobre questões essencialmente públicas, está sendo
dada pela cobertura alternativa digital. Difícil interromper este processo. Já
foi dada a largada. Construído pela população, no pós-Covid, o mundo poderá ter
outra configuração cultural a partir desta cidadania.
*Jornalista e professor
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