Folha de S. Paulo
É preciso calibrar melhor as imunidades
presidenciais
É alentador constatar que a Justiça tenta
enfim traçar uma linha vermelha para o vandalismo
institucional de Bolsonaro; é exasperante verificar que o presidente
não se intimida e continua com seus ataques. Adoraria dizer que o Judiciário
triunfará, mas não estou seguro disso.
O problema é que, no âmbito penal, a Justiça pode pouco contra o chefe do Executivo. Se entrarem numa disputa tipo cabo de guerra, o presidente ganha. O pecado original está na Constituição, mais especificamente no § 4 do artigo 86, que determina que o presidente, na vigência de seu mandato, não seja responsabilizado por atos estranhos ao exercício de suas funções.
A linguagem asséptica do texto
constitucional esconde o alcance do dispositivo, que, na interpretação que lhe
vem sendo dada, estabelece que o presidente da República não pode ser preso nem
se esquartejar um desafeto ao vivo na televisão. Esse seria um ato estranho a
suas funções, pelo qual ele só responderia ao término do mandato. Se o ato não
for estranho a suas funções —imaginemos corrupção ou prevaricação—, a situação
melhora, mas não muito. Nesse caso, o mandatário pode ser responsabilizado, mas
só se a Câmara autorizar a abertura do processo. E precisa fazê-lo por maioria
de 2/3.
A Constituição não proíbe a adoção de
medidas cautelares diferentes da prisão —uma ordem para que ele não se
pronuncie sobre voto impresso, por exemplo. Mas, se ele não acatar, não há
muito que se possa fazer, já que a desobediência dificilmente vira processo. Na
esfera eleitoral, a rota é menos pedregosa. O TSE tem em tese envergadura para
torná-lo inelegível no próximo pleito, embora eu ache difícil que se chegue a
esse ponto.
Esquecendo Bolsonaro, penso que é preciso
calibrar melhor as imunidades presidenciais. Nosso sistema é herança de tempos
em que figuras presidenciais preferiam cometer suicídio a ver-se investigadas
por um crime. Não é mais o caso.
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