O Estado de S. Paulo
Com Bolsonaro como astro, o vírus é mero figurante no drama recente do Brasil
Bolsonaro pode perder de Lula e de outros
candidatos na próxima eleição, mas ganha do coronavírus em todas as frentes. O
discurso golpista, a economia emperrada, o dólar nas alturas, a insegurança
política e o atraso no combate à pandemia comprovam o poder devastador do
presidente. O País acumulou US$ 47,94 bilhões de superávit comercial de janeiro
até o meio de agosto, mas o dólar custava R$ 5,47 no início da manhã da última
sexta-feira. Poderia, segundo especialistas, estar sendo comercializado abaixo
de R$ 5. Fatores externos, como a economia chinesa, afetam a cotação, mas a
instabilidade cambial, no Brasil, resulta principalmente de incertezas
internas. A ameaça de impor um calote aos credores de precatórios é apenas um
dos muitos fatores de insegurança.
Que o presidente seja mais perigoso que o
coronavírus é fato verificado há muito tempo. Bolsonaro continua menosprezando
a crise sanitária e pregando maior atenção aos negócios, como se a economia
fosse independente da saúde. Economistas e autoridades econômicas de respeito
têm opinião muito diferente. Pandemia, variantes do vírus e progresso da
imunização têm aparecido com destaque em documentos de instituições financeiras
privadas, bancos centrais e entidades multilaterais.
Ao anunciar suas últimas decisões, o Banco Central do Brasil e o Federal Reserve, o BC americano, citaram no início dos comunicados o avanço da vacinação e a insegurança ainda ocasionada pela covid-19. Pandemia tem sido tema frequente de estudos e comentários divulgados no site da Fundação Getúlio Vargas. Essa constância está afinada com padrões globais. Uma força-tarefa para apoiar países em desenvolvimento em assuntos ligados à doença, incluídos financiamento e acesso a recursos médicos, foi criada por quatro grandes instituições, o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial (Bird), a Organização Mundial da Saúde (OMS) e a Organização Mundial do Comércio (OMC).
No Brasil, os dirigentes do BC destoam de
autoridades federais mais sujeitas à orientação presidencial. O ministro da
Saúde, Marcelo Queiroga, cada vez mais parecido com seu antecessor, declarou-se
contrário ao uso obrigatório de máscara. Já existem, argumentou, muitas leis
descumpridas. Mas o detalhe mais significativo, nesse episódio, é outro. Usar
máscara, assim como evitar aglomerações, é questão de saúde pública, de
interesse coletivo, portanto. Não é problema de interesse privado ou de direito
individual, e um médico deve conhecer essa diferença.
Mas é preciso considerar se o
reconhecimento desse fato – o interesse coletivo – é compatível com os padrões
bolsonarianos. Fiel a esses padrões, o ministro da Economia, Paulo Guedes,
mencionou o risco de violar uma obrigação legal, o pagamento de salários de
servidores, se o governo tiver de liquidar os precatórios sem parcelamento. “Se
não descumprirmos uma lei, descumprimos outra”, disse o ministro em audiência
no Congresso.
Essa conversa é inaceitável. A alegada
surpresa em relação ao valor dos precatórios, próximo de R$ 90 bilhões, mostra
despreparo. Essa condição já foi exibida na elaboração da proposta orçamentária
para este ano. O projeto foi feito como se a pandemia e seus efeitos econômicos
e sociais devessem desaparecer em 31 de dezembro. Uma das consequências foi a
suspensão do auxílio emergencial nos primeiros três meses de 2021, um erro
desastroso.
A equipe econômica deveria estar preparada
para ajustar o próximo Orçamento ao aperto das dívidas judiciais, sem mexer nos
gastos obrigatórios. Mas o ministro tem procurado acomodar a política fiscal às
conveniências do presidente e às ambições de sua base fisiológica. O primeiro
passo deveria ser uma revisão dos gastos com o Centrão e com os interesses
eleitorais de Bolsonaro.
O esforço do ministro para atender o chefe,
evitar uma violação ostensiva das normas fiscais e negociar, ao mesmo tempo, um
arremedo de reforma tributária resulta em enorme confusão. Está tudo errado, a
começar pela ideia de improvisar, no meio de uma crise, uma reforma do sistema
de impostos, sem distinguir as questões imediatas, como a campanha eleitoral, e
os objetivos mais amplos, como a renovação fiscal e o desenvolvimento.
Bolsonarismo, enfim, é isso mesmo.
Agindo diretamente ou por meio de
servidores, o presidente desarruma a economia, compromete as finanças públicas,
assusta o mercado e humilha o vírus. Este contamina, mata e atrapalha os
negócios, mas Bolsonaro já foi e ainda pode ir muito além. O presidente
retardou a vacinação, combateu o distanciamento social, criticou o uso de
máscara, desinformou, defendeu tratamentos errados e estimulou comportamentos
de risco. Milhares de mortes poderiam ter sido evitadas, segundo especialistas.
Essas façanhas devem aparecer no relatório da CPI da Pandemia, mas a história
continua. O discurso golpista denota uma ambição muito maior, indicada pelas
ameaças à eleição, pelos ataques ao Judiciário e pelos elogios a um torturador.
Nessa história, o vírus está longe de ser o protagonista.
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