O Estado de S. Paulo
Responsabilidade fiscal: defendida no caso
dos absorventes, desprezada no caso dos precatórios
O relatório sobre a Proposta de Emenda à
Constituição (PEC) n.º 23, de autoria do deputado Hugo Motta, constitucionaliza
o calote. Essa versão piorada da proposta original do governo fixa um limite
anual para os precatórios e sentenças judiciais. O restante entrará na lógica
do “devo, não nego; pago quando puder”. Na mesma semana, o presidente vetou a
distribuição de absorventes em razão da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF).
Mandaram às favas os escrúpulos de consciência que restassem.
A proposta, coassinada pela deputada Tabata
Amaral, não cria despesas obrigatórias de caráter continuado e, portanto, não
requer medida compensatória. O argumento na hora do veto estava errado. O
próprio artigo 6.º do texto aprovado submete a despesa com a compra de
absorventes aos chamados contingenciamentos. O dinheiro viria do orçamento do
SUS, mas poderia ser congelado, se necessário. O artigo 17 da LRF trata de despesas
obrigatórias permanentes. Leonardo Ribeiro, especialista em contas públicas do
Senado, logo percebeu a confusão e desmontou essa base do veto.
Vale dizer, o custo da medida é estimado em
R$ 119,1 milhões. Já a manobra constitucional dos precatórios abrirá folga de
R$ 48,6 bilhões no teto de gastos em 2022. Um ataque à Constituição e ao teto,
com direito a calote em despesa obrigatória. E a lei? Ora, deixem-nas para os
inimigos...
Para ter claro, essa folga será igual a 405 vezes o custo da distribuição de absorventes para meninas e mulheres pobres. Fere de morte o teto de gastos, como mostrei na coluna de 28 de setembro (O fim do teto de gastos). A distribuição de absorventes, por sua vez, estava rigorosamente dentro do figurino da responsabilidade fiscal.
Sabe-se que a isonomia não é o forte de
quem toma decisões sob a lógica do populismo, da desfaçatez, da ignorância, do
despreparo e do desconhecimento das leis. Mas o mais grave é a sensibilidade
social passar longe dessa velhacaria. Água e óleo. Vale tudo – inclusive
ignorar a lei – para espezinhar uma opositora do governo em franca ascensão.
Aliás, Tabata Amaral, sua combatividade me representa.
Como em muitas outras ocasiões, o
presidente não demonstra empatia pelos que sofrem. O “e daí?” é o mantra macabro
a orientá-lo. No domingo, nova dose de irresponsabilidade. Apareceu sem
máscara, em Santos, para forçar a entrada na Vila Belmiro, mesmo não vacinado.
Faz de propósito. Quer animar os desvairados que ainda ocupam as arquibancadas
de seu governo nefasto.
Mas não se enganem. Sobra esperteza tanto
quanto falta compaixão. Ninguém chega ao posto máximo da Nação sem sagacidade.
Pode, sim, chegar sem alma e sem espírito público, uma vez vendidos ao diabo,
mas não sem esperteza. Seu faro indica como garantir certos apoios nas eleições
de 2022, mesmo após o fracasso destes três anos: dinheiro para o Centrão. No
fim do dia, é preciso pulverizar recursos sobre as bases dos amigos. O que está
em jogo é isso. Não é o reajuste do Bolsa Família – a melhor desculpa que se
poderia ter, diga-se.
A nova proposta para os precatórios é mais
sofisticada, na forma, mas continua a calotear despesas obrigatórias. A
engenhosidade está em limitar, em primeiro lugar, a expedição dos precatórios.
O limite estará baseado no valor pago de 2016 (R$ 30,7 bilhões) corrigido pela
regra do teto (inflação). Assim, o pagamento de 2022 será de R$ 40,5 bilhões,
restando R$ 48,6 bilhões para saldar no futuro. Permite-se, ainda, o chamado
encontro de contas para anular parte do crescimento exponencial derivado,
matematicamente, dessa estratégia.
A ideia é de que as dívidas dos
precatoristas com a União possam ser anuladas. A medida evitaria o pagamento em
dinheiro pela União e esses acordos estariam fora do limite máximo estipulado.
Por exemplo, se uma empresa tem dívida tributária de R$ 10 milhões com o
governo e o mesmo valor a receber em precatórios, poder-se-ia anular a dívida
pelo crédito em precatórios. O fato é que, mesmo no caso dos governos estaduais
– em que o mecanismo proposto dá poder de barganha elevado à União –, sempre
haverá o risco de questionamento no Supremo Tribunal Federal.
Essa lambança fiscal representará o fim do
teto de gastos, turbinará os juros (ainda mais), elevará a dívida pública e
reduzirá as chances de crescimento econômico. A sanha por abrir espaços
orçamentários em ano eleitoral já está sendo penalizada, naturalmente, pelas
forças de mercado.
É o vale-tudo para amealhar os apoios
necessários e viabilizar despesas novas. Enquanto isso, nega-se a dignidade às
meninas e às mulheres pobres, sob alegação de risco à responsabilidade fiscal.
Sim, a mesma atirada pela janela nesta lambança histórica com os precatórios.
Hipócritas.
A esperteza, quando é muita, engole o dono.
O governo seguirá na base de dois pesos e duas medidas até outubro do ano que
vem. Deve pensar: às favas os escrúpulos de consciência, a ética, a lei e todo
o resto. A eles, pouco importa que a mula manque. Como na marchinha de Haroldo
Lobo, querem mesmo é rosetar.
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