terça-feira, 12 de outubro de 2021

Carlos Andreazza - Entrar e então morrer

O Globo

Circularam, no último fim de semana, ao menos duas falas barbarizantes de Marcelo Queiroga, ministro da Saúde e médico. E ressentido. É um governo de ressentidos. De ressentidos e oportunistas, não raro também incompetentes. Tudo previsível. Este perigo: o ressentido de súbito com — o que supõe ser — poder. O perigo: este tipo — o ressentido empoderado, ademais incompetente, um agente grato, mostrador de serviço — sob a gestão do bolsonarismo; sob o controle da máquina de genuflexão bolsonarista. E então as falas de Queiroga, previsíveis.

Numa, comparou a exigência do uso de máscaras — como medida de contenção da peste, um vírus transmitido por via aérea — ao de preservativos contra doenças sexualmente transmissíveis. Decerto se tendo por mui esperto, perguntou se, por esse motivo, deveríamos obrigar as pessoas a usar camisinha. Na outra, confrontado com a marca de 600 mil mortes, sentiu-se autorizado — estava irritadinho — a relativizar o volume: seriam, afinal, 380 mil os que morrem do coração anualmente no Brasil, outros muitos de câncer.

Terá faltado somente um “e daí?” — talvez um “não sou coveiro” — para que fosse Jair Bolsonaro absolutamente. Nunca será. Mas precisa — pode e deve — se esforçar. É estimulado a se esforçar, a se humilhar. Pelo poder. Estimulado — desafiado — a debulhar seu ressentimento. Pela existência.

Nunca será. Nunca terá. Mas não por falta de entrega. É o ciclo de uma submissão infinita, cuja humilhação jamais será o bastante. E que resulta em mortos-vivos. Mortos-vivos pelo poder. Mortos-vivos que se julgam com poder.

É a chance da vida. O homem, ressentido fundamental, luta por — ao mesmo tempo — existir e sobreviver. Não existe. Nem sobreviverá. Mas peleja. É a chance da vida do morto-vivo.

A rápida radicalização bolsonarista da linguagem de Queiroga demonstra como um indivíduo fraco — e deslumbrado pela cadeira — reage quando sob pressão. Nunca será um bolsonarista puro-sangue. Jamais um admitido. Será sempre um útil perseguidor da condição de aceito no bolsonarismo, o que equivalerá a ser algo — a continuar ministro. Uau! O que equivale a descartável.

Nunca será, mas por que não iludi-lo, manipulá-lo? Por que não iludi-lo — atraí-lo — com a oferta de perenidade do que pensa lhe dar existência?

A estrutura do jogo de subjugação tem fartos exemplos de dinâmica. Na semana passada, a rádio CBN, por meio dos repórteres Cézar Feitosa e Isa Stacciarini, informou que o chefe de gabinete do ministro da Saúde acusava Mayra Pinheiro, secretária de Gestão do Trabalho no ministério (na prática, a divulgadora-mor da cloroquina desde dentro da pasta), de conspirar — em parceria com Onyx Lorenzoni, o ministério de si mesmo — para derrubar Queiroga; alguém cujo poder, pelo qual vai apaixonado, nem sequer o alça a lugar de conseguir demitir a subordinada.

Fraco e dependente do cargo, refém do cargo, para ser alguém, para ser alguém e ao mesmo tempo sobreviver sendo o que é, ao ministro só restou — só resta — se defender radicalizando. Padrão. E então o vimos, de novo segundo reportagem de Feitosa, mobilizar-se, sob ordem de Bolsonaro, para que a Conitec alterasse a pauta de sua reunião e não analisasse — não votasse a favor de — um relatório que se manifesta contrariamente ao tratamento precoce.

Assim será doravante, até a lata de lixo em que o chefe o jogará. Para quê? Para ser ministro, mais um cavalo do presidente. Para ser nada; para sobreviver — até o descarte — sendo o que é. Nem sequer um Onyx, cuja radicalização — a inexistência — mira o governo do Rio Grande do Sul. O que mira Queiroga? Ser, acima de Pazuello, o ministro da Saúde de Jair Bolsonaro?

À pressão bolsonarista, carga por submissão total, reage Queiroga com mais demonstrações de bolsonarismo. Chamado de vacinista, acusado de vacilante em defender a queda das máscaras, o ministro da Saúde, médico e ressentido, mais ressentido que médico, produz e multiplica, em busca de pontos no mercado interno reacionário, a oferta de dedos médios à população brasileira, conforme visto em Nova York.

Quer existir. Mal sobrevive.

O sujeito não seria — jamais será — suficientemente bolsonarista, por isso tem a cabeça pedida, porque nunca será suficientemente bolsonarista; e a isso, a esse desafio, responde, porque quer provar que pode, com mais bolsonarismo, e não pode; e por isso perderá a cabeça, cedo ou tarde, de qualquer modo. Os dedos ficarão. Eis o ciclo.

Não existe. Não sobreviverá. Neste governo captador de moralidades corrompidas: é entrar e então morrer.

Queiroga: o ressentido consciente de que só poderia chegar a ministro num governo disfuncional como o de Bolsonaro; e que, sob pressão para inexistir ainda mais, consciente de que sua permanência — que toma por existência — dependerá de se extremar, radicaliza na linguagem progressivamente, para agradar ao chefe e a seus sectários. Para sobreviver, o morto-vivo. É uma descida sem fim.

Entrar e então morrer. Na história: Marcelo Queiroga, o ministro da Saúde de Bolsonaro.

 

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