Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
Os indígenas brasileiros autênticos, em sua
maioria, não querem ser como nós. Querem ser como eles são e ainda podem ser
O cara pálida que ocupa a Presidência da
República teve seu momento de esplendor plumário em cerimônia no Ministério da
Justiça, quando lhe foi entregue (e a membros do seu governo) a Medalha do
Mérito Indigenista. O governo condecorou-se.
A cerimônia, no entanto, teve aspectos
antropologicamente interessantes e reveladores, não só por ser uma usurpação
cultural da imagem do índio por brancos anti-indigenistas. Faziam-se de índios,
que não são nem sabem o que são. Mas também os teve nos detalhes das fotos
oficiais que chegaram aos jornais.
As revelações vêm do inesperado. A começar da fotografia centralizada pela figura secundária da criança indígena que o presidente, de cocar na cabeça, segurava no colo. A criança tenta tomar distância para ver melhor a cara de quem o carrega. A direção de seu olhar e sua expressão são de “O que é isto?!”.
O ponto de impacto da foto, o que captura
imediatamente o olhar de quem a vê, não é um presidente de cocar, mas o olhar
de espanto da criança. Aquele olhar de inocente que no afastamento espontâneo
afasta-se do propósito manipulativo da foto. O sociólogo Henri Lefebvre
interpreta uma ocorrência dessas como crítica na própria ação. Não é preciso
dizer nada nem é preciso querer para que a ação se construa a si mesma como
ação crítica.
Na literatura sobre a fotografia como
modalidade de conhecimento, “punctum” é como Roland Barthes denomina o
inesperado na imagem fotográfica, a que atrai o olhar de quem a vê para o ponto
que é diverso do ponto de referência do fotógrafo. Fotógrafos profissionais, em
fotos não posadas, escolhem o que Henri Cartier-Bresson define como instante
decisivo, aquele que faz da foto uma obra autoral.
Como neste caso: o fotógrafo que a fez
provavelmente quis fazer uma foto idílica do governante, a da centralidade de
um pai da pátria, que governa acima das diferenças culturais e sociais. O olhar
de espanto da criança, porém, “roubou-lhe” a fotografia. O ver da criança é o
“punctum” da foto, o inesperado invasivo, a mediação que diz o que Bolsonaro é,
e não o que o fotógrafo quis fotografar e com sua fotografia dizer.
As consequências antibolsonaristas da foto
no imaginário social constituem o que Edgard Morin define como efeito
bumerangue da comunicação imprópria. O espanto da criança chama a atenção de
todos para o impróprio do cocar na cabeça imprópria, na cerimônia imprópria, no
governo impróprio.
O impróprio, isto é, o fora do lugar da
pessoa que justifica a imagem (e fora da cabeça de quem tem direito a cingir o
significativo diadema plumário), está na extensa lista de manifestações de Jair
Bolsonaro contra as populações indígenas e seus direitos reconhecidos desde o
período colonial. Como o direito ao respectivo território e à respectiva
diferença cultural, na língua e nos costumes.
A jovem líder indígena Txai Suruí
apresenta, a propósito da cerimônia, em artigo na “Folha de S. Paulo”, uma
lista de ações anti-indigenistas do presidente e de membros do governo também
condecorados na ocasião.
São demonstrações de que Bolsonaro ignora
completamente o que é o Brasil oposto ao do nós bolsonarista, um país marcado
por elenco extenso de diferenças linguísticas. São 274 as línguas faladas por
mais de 800 mil brasileiros das diferentes nações indígenas que têm direito
histórico e constitucional à sua diferença e ao seu território ancestral.
Na fala presidencial, no Ministério da
Justiça, Bolsonaro declarou querer que os povos indígenas se sintam “como nós”
e façam em suas terras “exatamente o que fazemos com as nossas”. A verdade é a
de que os indígenas brasileiros autênticos, em sua maioria, não querem ser como
nós. Querem ser como eles são e ainda podem ser.
Em grande número de grupos indígenas, tem
havido movimentos, nos últimos 50 anos ou mais, pela tomada de elementos da
cultura branca para ampliar e fortalecer as culturas indígenas. Jovens estão
sendo mandados às universidades brasileiras nesse sentido. Portanto, cabe
perguntar a Bolsonaro e coadjuvantes: “Nós, quem, cara pálida?”. Nossos povos
indígenas são o nosso nós. É uma questão antropológica que não se resolve na lógica
redutiva da cultura de quartel.
A expressão jocosa teria surgido no começo
dos anos 60, baseada nas histórias americanas sobre o Zorro, dos anos 1930, que
aqui chegaram como histórias em quadrinhos e filmes. Zorro era o Lone Ranger, o
cavaleiro solitário, um justiceiro, sempre acompanhado de um índio servil
conhecido como Tonto. Em certa ocasião, ambos foram cercados por índios hostis.
Não havia saída para os dois. Zorro disse a Tonto: “Nós estamos perdidos,
Tonto”. O índio fez que não o conhecia e respondeu: “Nós, quem, cara pálida?”.
José de Souza Martins é
sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da
Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall
(1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras.
Entre outros livros, é autor de "Sociologia do desconhecimento ensaios
sobre a incerteza do instante" (Editora Unesp, 2021).
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