Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
Sociedade precisa se preparar para a guerra
informacional que será arma do bolsonarismo. O que está em jogo é a democracia
brasileira
O medo será a principal estratégia
eleitoral do presidente Jair Bolsonaro para as eleições de 2022. Isso vai
acontecer em três dimensões: na defesa de um modelo moral tradicionalista e
intolerante, na utilização das instituições públicas para perseguir e destruir
os adversários, bem como no formato da comunicação bolsonarista, que será
guiada por uma lógica de guerra de informações. Por meio dessas três armas, o
bolsonarismo vai transformar o pleito presidencial deste ano no mais virulento
da história do país. A pergunta que fica é: a sociedade brasileira que se diz
adepta da democracia está preparada para uma disputa política com feição de
batalha final?
Geralmente, os candidatos concorrem a
eleições prometendo novas soluções aos problemas públicos, o que pode ser
traduzido como uma proposta de futuro. A ideia de esperança de dias melhores
resume bem a campanha dos principais vencedores de disputas democráticas
recentes. Mas o bolsonarismo não se encaixa nessa visão, pois a extrema direita
que se espalhou por vários países do mundo é contrária à ideia de mudança e
melhoria contínua que ancora o mundo contemporâneo.
Seu modelo de política é outro: defende a manutenção de tradições e valores morais do passado, ao mesmo tempo que repele novas ideias e comportamentos. Mais do que isso: o bolsonarismo não tem nenhuma tolerância com visões diferentes de mundo e busca bani-las. Não por acaso a guerra cultural é a principal característica desse neopopulismo autoritário presente no trumpismo, no governo húngaro de Viktor Orbán e na gestão do presidente Bolsonaro.
Aqui entra então o primeiro uso do medo
como estratégia eleitoral bolsonarista: não só difundir certos valores
tradicionalistas, mas sobretudo mostrar que outros atores políticos e sociais
estão burlando os princípios morais adequados. A consequência lógica desse
modelo de ação política é amedrontar parcela do eleitorado - algo entre 15% a
20% dos eleitores -, mostrando o que será o Brasil caso Bolsonaro não se
reeleja. Tal enredo eleitoral vai ocorrer várias vezes até outubro.
O escândalo gerado em torno do filme de
Danilo Gentili - acusado de estimular a pedofilia - não tem nada a ver com a
obra em si. Trata-se de um capítulo de uma estratégia maior de vender o
bolsonarismo como o único grupo capaz de defender o país dos “pervertidos”.
Provavelmente, os próximos capítulos vão envolver adversários - na verdade, o
retorno do vídeo envolvendo o governador João Doria já foi um aviso do que vem
pela frente. De todo modo, o moralismo é orientado pelo signo do medo como
forma de obter e/ou fidelizar eleitores.
Há uma consequência de se usar o moralismo
como arma para amedrontamento que é mais sutil - e certamente mais perigosa.
Afinal, se em várias esferas da sociedade atores políticos atuam, segundo os
bolsonaristas, de alguma maneira contra os “valores cristãos”, é preciso não só
reeleger Bolsonaro, mas lhe dar um poder maior para evitar esse
“desvirtuamento” do país. Neste sentido, o objetivo da estratégia do medo não é
só a reeleição, mas também criar condições para que um eventual segundo mandato
seja marcado pelo fortalecimento da Presidência da República frente ao
Congresso, ao Supremo Tribunal Federal e à Federação.
Se for eleito com base em tal discurso,
Bolsonaro vai tentar usar seu eleitorado para pressionar por mudanças no perfil
dos ministros do STF e para jogar goela abaixo sua agenda moral na Câmara e no
Senado. Essa estratégia alicerçada em espalhar o medo nas eleições para colher
autocracia no governo não é inédita: Viktor Orbán fez isso na Hungria. Os
democratas do país têm de estar atentos porque, com certeza, um segundo mandato
bolsonarista não será para imitar o primeiro. O anúncio do provável vice
mostrou que o bolsonarismo não vai querer dividir o poder como fez nos últimos
quase quatro anos.
Aliás, é preciso lembrar a razão que levou
Bolsonaro a dividir a contragosto o poder com o Centrão: isso ocorreu para
evitar seu impeachment, uma vez que há centenas de vezes mais razões para
incriminá-lo do que houve no caso de Dilma. Mesmo tendo que abandonar o sonho
de ter um presidencialismo imperial junto ao Congresso, o bolsonarismo procurou
outros caminhos para concentrar poder, principalmente buscando controlar outras
instituições públicas cuja função é fiscalizar o Executivo federal. Em alguns
casos, houve uma reação mais forte à autocracia bolsonarista, como no caso do
STF e da maior parte dos governos estaduais, embora o Supremo e a Federação não
tenham ficado totalmente incólumes aos atos e discursos autoritários do
presidente da República. Em outras palavras, as instituições públicas que
salvaram a democracia ficaram machucadas.
Outras instituições públicas de controle,
por outra parte, foram dominadas quase por completo pelo bolsonarismo. A
Polícia Federal está passando por um processo de silenciamento sem igual na
história recente da democracia brasileira, e algo similar ocorre também na
Controladoria-Geral da União. Pior é a situação do Ministério Público Federal,
cujo chefe máximo atua hoje como um subordinado do presidente da República, o
que destrói na prática a autonomia político-administrativa consagrada pela
Constituição de 1988. Ninguém acredita em Brasília que haverá uma fiscalização
séria e muito menos punição a qualquer ato grave do governo Bolsonaro - e já há
casos, como mostrou a CPI da Covid-19, que podem ser considerados crimes de
responsabilidade.
A estratégia eleitoral baseada no medo vai
além da criação de uma República sem freios e contrapesos. Ela avança o sinal e
transforma as instituições públicas num instrumento para perseguir inimigos e
pressionar aliados. É líquido e certo que até o final da eleição a PF vai
encontrar problemas e denúncias contra vários dos candidatos. A Polícia
Federal, no fundo, é comandada hoje diretamente pelo ministro da Justiça, que obedece
fielmente ao presidente. Uma situação em que o Estado é usado contra os
adversários da campanha presidencial de Bolsonaro constitui a antessala do
autoritarismo.
A lógica de aparelhamento do Estado chegou,
ademais, às políticas públicas, de modo que muitos ministérios, com seu poder
normativo e de recursos, têm atuado para beneficiar amigos do rei e para
pressionar aliados a serem mais fiéis. A história recente do ministro da
Educação, com uma rede de distribuição de verbas pela via de pastores, é mais
do que clientelismo. Trata-se de corrupção, que pode ser feita até em nome de
Deus. Este caso comprova que já há, em parte, um modelo autocrático em prol de
Bolsonaro: os órgãos de controle não vão encontrar as diversas formas corruptas
que se instalaram num país cuja parcela relevante do Orçamento é secreta.
Quando não há mais Estado republicano,
baseado em regras e comportamento impessoal dos funcionários públicos, o medo
se espalha também para os inimigos do rei. A verdade é que Bolsonaro maneja o
Executivo federal como se fosse um oligarca do tempo dos coronéis, imprimindo
uma nova máxima: aos amigos, tudo; aos inimigos, perseguição e penúria.
Aos medos orientados pelo moralismo e pelo
controle das instituições públicas federais, soma-se outro, que em boa medida
alimenta os anteriores: o terror político disseminado pelos instrumentos de
comunicação. O bolsonarismo se construiu desde a eleição passada como uma força
política alicerçada na guerra de informações. Daí se entende o lugar de Carlos
Bolsonaro no esquema, porque ele é o comandante do gabinete de ódio. Para
aqueles que ficaram assustados com as mentiras e baixarias realizadas de 2018
para cá, preparem-se: o jogo será muito mais sujo e baseado numa proliferação
mais ampla de fake news na próxima disputa presidencial. A famosa e mentirosa
história da “mamadeira de piroca” usada contra Fernando Haddad será pouca coisa
perto do que vem pela frente.
Muita coisa já vem sendo aventada na
internet e nas redes sociais bolsonaristas sobre que tipo de medo será
disseminado pela comunicação em larga escala. É bem provável que uma parte diga
respeito a questões morais, inventando histórias escabrosas sobre Ciro, Lula,
Moro, Doria e quem mais se colocar contra o bolsonarismo. Outra parte será para
amedrontar as pessoas em relação ao futuro, criando, por exemplo, fake news de
invasões de propriedades comandadas por petistas. A imaginação ainda não é
capaz de antever todas as possibilidades de mentiras que serão uma das bases
mais importantes da campanha de Bolsonaro. Do mesmo modo, não se sabe o quanto
isso vai atingir corações e mentes de brasileiros, até porque o exagero pode
levar ao descrédito e o povo vai comparar tais lorotas com sua vida concreta
nos dias de hoje.
A lógica do medo nos três formatos expostos
aqui - o moralismo, o controle das instituições públicas federais e a guerra
informacional - serão armas poderosas do bolsonarismo. Mais do que os
concorrentes, a sociedade precisa se preparar para essa batalha. A imprensa
terá de desmentir as sujeiras espalhadas pelas redes sociais e vasculhar a
corrupção que será escondida por Bolsonaro. As organizações mais relevantes da
sociedade civil terão de conversar todos os dias com a população para evitar
que a mentira e o desmando vençam. Não será fácil, mas o que está em jogo é a
democracia brasileira.
Fernando Abrucio, doutor em
ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas,
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