Folha de S. Paulo
Margarida Genevois não parou de trabalhar,
um só segundo, pela construção de uma sociedade mais justa
Margarida dificilmente termina uma frase
sem um sorriso, ainda que seus olhos possam estar expressando uma profunda
indignação. Nascida Bulhões Pedreira, tradicional família do Rio
de Janeiro, em 10 de março de 1923, deparou-se com o analfabetismo, a
desnutrição e a doença ao mudar-se com o marido, Lucien Genevois, para o interior
de São Paulo. Desde então, Margarida não parou de trabalhar, um só segundo,
pela construção de uma sociedade mais justa.
Nos anos 1970, combateu o arbítrio e a violência de Estado. Com suas filhas, "correu da polícia". Foi a primeira mulher a ter assento na Comissão de Justiça e Paz, que presidiu duas vezes. Ali ouviu, em primeira voz, o depoimento de quem havia sido torturado e dos familiares que buscavam desaparecidos.
Era a embaixadora da comissão, como lembra Belisário dos Santos Jr.. Viajou o mundo, denunciando as violações ocorridas no Brasil e arrecadando recursos para a manutenção das atividades da comissão. Muitas vezes era a única mulher na sala, para o espanto da comunidade eclesiástica internacional.
Margarida sempre teve posição política
clara, mas jamais subordinou a defesa da dignidade humana a qualquer ideologia.
Seu partido sempre foi o dos direitos
humanos. Certa vez, assinou uma nota de repúdio à pena de morte aplicada em
Cuba, deixando clara a hierarquia de seus compromissos fundamentais.
Terminado o regime autoritário, Margarida
percebeu que a democracia e
os direitos humanos não se transformariam em realidade sem muita luta,
especialmente para negros e pobres, para mulheres e lideranças comunitárias,
para trabalhadores rurais e, sobretudo, para crianças pobres. Para enfrentar
esse desafio, em companhia de outros intelectuais e lideranças políticas,
contribuiu para a criação da Comissão
Teotônio Vilela, em 1983.
Nesse período, Margarida sistematicamente
inspecionava unidades de internação de jovens, delegacias, moradores de rua.
Viajou ao Araguaia em busca de desaparecidos. Foi à Serra Pelada testemunhar a
violência e a devastação.
Em 1987, sua presença evitou um segundo
massacre em Marabá, como narrado na bela biografia "Margarida,
Coragem e Esperança", escrita por Camilo Vannuchi.
Dois dias depois do Massacre
de 111 detentos na Casa de Detenção de São Paulo, em 1992, com colegas da
Comissão Teotônio Vilela inspecionou o palco da tragédia. Lembro do medo, do
sangue no chão e do cheiro de morte que contrastavam com a serenidade indignada
de Margarida.
A educação em direitos humanos tem sido
outro tema central dessa extraordinária trajetória. Durante a gestão de Luiza
Erundina, na Prefeitura de São Paulo, deu início a uma importante
iniciativa em parceria com Paulo Freire.
Fundou, posteriormente, a Rede Brasileira de Educação em Direitos Humanos ao
lado de amigas igualmente compromissadas, como Maria Victória Benevides. Se não
formos capazes de formar as próximas gerações a partir da lógica dos direitos
humanos, dificilmente viveremos em paz, explica Margarida.
Neste momento em que prosperam a
boçalidade, o obscurantismo, a violência e indiferença de muitos, é inspirador
ver essa extraordinária mulher —que adentra o seu centenário— integralmente
engajada na defesa dos povos indígenas, da população de rua e de outros grupos
vulneráveis ao lado de seus colegas da Comissão Arns, ou ainda, voltando às
ruas de braços dados com seu velho amigo José Carlos Dias, agora de máscara,
para defender a vacina, a democracia e, sobretudo, os direitos humanos. Brava
Margarida!
*Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP.
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