O Globo
É perturbador acompanhar o debate na esquerda sobre a invasão à Ucrânia. Logo no começo do conflito, o perfil do PT no Senado no Twitter publicou nota dizendo que “condena a política de longo prazo dos EUA de agressão à Rússia e de contínua expansão da Otan em direção às fronteiras russas”. Depois de ser criticada, a nota foi apagada, e manifestações individuais de senadores petistas contrários à invasão foram retuitadas. Mas a primeira nota ter saído mostra que forças relevantes no partido consideram a invasão justificada. A nota oficial do PT, publicada dois dias depois, reflete bem essa ambivalência, condenando uma solução militar, mas não a invasão: “Entendemos que a solução do contencioso entre Rússia e Ucrânia deve se dar de forma pacífica, utilizando todas as possibilidades de mediação em fóruns multilaterais”. Em sites de esquerda, predomina o apoio à invasão russa, em clima de torcida.
Para além do passado soviético, com que o
atual regime não tem identidade política nem ideológica, é difícil entender a
simpatia de parte da esquerda pela Rússia. O país não tem um regime socialista,
mas uma economia capitalista bastante desigual, entre as mais desiguais da
Europa. A Rússia também tem uma história imperialista de desrespeito à
soberania e à autodeterminação dos seus vizinhos, já tendo invadido a Geórgia
(em 2008) e a própria Ucrânia (na região da Crimeia, em 2014).
As violações aos direitos humanos lá são
tão numerosas que é difícil resumi-las. A Rússia não respeita a liberdade de
associação; persegue e impede o trabalho das mais tradicionais e respeitadas
ONGs; dissidentes e opositores são presos, alguns assassinados, mesmo no
exílio; o governo controla a imprensa; persegue e multa veículos; prende e mata
jornalistas; a tortura nas forças policiais e militares é uma prática
disseminada e tolerada; a população LGBTQIA+ não tem direitos civis básicos e é
perseguida por agentes do Estado; e as eleições, embora aparentemente vencidas
por Putin, são mesmo assim fraudadas, apenas para demonstrar força.
Se não é por simpatia pelas virtudes
sociais e políticas do regime, a defesa da invasão por parte da esquerda parece
se dar por razões geopolíticas, pelo efeito positivo de fazer emergir um mundo
mais multipolar. Essa é, pelo menos, a tese mais frequente dos intelectuais e
comentadores de esquerda que defendem a invasão.
O argumento é que a Otan, a aliança militar
que na Guerra Fria se opunha à expansão da União Soviética, promoveu o atual
conflito ao se ampliar para o Leste da Europa a partir dos anos 1990. Aproveitando
a debilidade russa com o fim do regime socialista, a aliança incorporou países
do antigo Pacto de Varsóvia e mesmo fronteiriços com a Rússia, como os
bálticos. A tentativa recente da Ucrânia de aderir à Otan teria sido a
gota-d’água para os russos, que teriam invadido o país num ato de defesa.
Os pressupostos do argumento estão
corretos. De fato, a Otan aproveitou a fraqueza da Rússia para se expandir.
Disso não deriva que os russos tenham o direito de violar a soberania ou de
ameaçar a integridade territorial de um país vizinho para impedi-lo de entrar
na União Europeia ou na Otan. Que direito legítimo é esse de um país invadir o
outro em defesa de seus interesses geopolíticos? A esquerda, agora, em defesa
de um mundo mais multipolar, passou a defender o imperialismo? Para extrair
apenas uma consequência desse raciocínio: se um governo eleito no Brasil viesse
a estreitar laços com a China, os Estados Unidos teriam o direito de invadir
nosso território, já que a China estaria se expandindo a uma zona tradicional
de influência americana?
Enquanto a maior parte da esquerda mundial
protesta e repudia a invasão da Ucrânia, parte significativa da brasileira
prefere defender o imperialismo. Se a esquerda quer manter um pouco de
integridade moral, está na hora de romper com os defensores de ditaduras e
impérios. Uma coisa é denunciar e combater todas as formas de imperialismo,
inclusive o americano. Outra, bem diferente, é defender as ações imperialistas
de um autocrata sanguinário, apenas porque equilibraria o jogo de forças no
cenário mundial.
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