Por Rodrigo Carro / Valor Econômico
Perfil não polarizador de Lula deverá
auxiliar na distensão política, diz cientista político Jairo Nicolau
O Brasil vive um momento de máxima
semelhança com os Estados Unidos em termos de polarização política, mas - ao
contrário da escalada de hostilidades entre democratas e republicanos - a
tendência por aqui é de uma distensão ao longo dos próximos meses e anos do
governo do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT). A distensão pode
se dar na medida em que Lula seja capaz de atrair o apoio de partidos fora do
campo da centro-esquerda, inclusive aqueles que estiveram ao lado do presidente
Jair Bolsonaro (PL) na campanha eleitoral deste ano. O cenário - traçado pelo
cientista político Jairo Nicolau, professor titular do FGV CPDOC - está sujeito
à influência de uma miríade de fatores, como por exemplo o papel político que
Bolsonaro assumirá após deixar o Palácio do Planalto, em janeiro.
Nicolau destaca que não se confirmou o pior cenário possível previsto por analistas em caso de uma derrota de Bolsonaro por pequena margem. Não houve insurreição das polícias militares nem apoio das Forças Armadas a atos antidemocráticos, mas a direita brasileira saiu extremamente fortalecida das eleições de 2022. Mesmo assim, faltaria combustível para impulsionar a radicalização política, uma vez que partidos e governadores que apoiaram Bolsonaro - como Cláudio Castro, no Rio de Janeiro - já demonstraram disposição para negociar com o futuro governo. “Provavelmente não caminharemos para uma polarização à esquerda", sustenta Nicolau, numa referência ao que ocorreu nos Estados Unidos, onde os democratas elevaram o tom para se contrapor ao extremismo de Donald Trump e seus partidários.
A seguir os principais pontos da entrevista ao Valor:
Valor: Estas eleições tiveram alguma característica
particular na comparação com as anteriores?
Jairo Nicolau: Há, claro,
diferenças porque há uma dimensão que acho que é mais importante que é a
disputa no Sudeste. De todas as eleições, essa foi a que o Sudeste foi mais
disputado. Vai deixar um empate do ponto de vista estatístico em Minas
[Gerais], apesar de o Lula ter vencido por casas decimais. E foi uma eleição
muito disputada em São Paulo e no Rio de Janeiro. Essa é uma característica
dessa eleição: uma disputa pelo Sudeste, que tem quase metade do eleitorado
brasileiro. E uma disputa nas cidades, pelo [eleitor] urbano. É coisa que não
aconteceu em 2018, quando Bolsonaro foi hegemônico nas grandes cidades do
Sudeste. Essa é uma característica importante em 2022, que distingue este ano
de 2018. Sem contar outras dimensões que aprofundaram essa segmentação do voto.
Valor: Quais?
Nicolau: Por exemplo, Bolsonaro ganhou entre os pobres em 2018. Ele ganhou entre as pessoas de renda média, de renda alta. Ele ganhou entre os homens, entre as mulheres. [...] Agora, ele perdeu entre as mulheres, os pretos, os pobres. Ou seja, foi uma eleição também sociologicamente mais dividida. O Brasil se dividiu, eu acho, como em nenhuma outra eleição anteriormente. Matematicamente na urna, socialmente, territorialmente. É uma eleição que mostra uma fratura que se dá em diversas dimensões: sociológica, ideológica e territorial.
Valor: Essa eleição foi a mais apertada desde a
redemocratização do país. A polarização tende a produzir efeitos duradouros no
comportamento do eleitor?
Nicolau: Essa divisão
que nós observamos não é de agora. É claro que as eleições assumiram um caráter
diferente. [Temos] uma disputa de segundo turno que vem acontecendo
regularmente há 20 anos. De 2002 para cá são cinco eleições, 20 anos, em que
nós tivemos um pleito decidido em dez voltas [etapas] porque tivemos primeiro e
segundo turno em todas as disputas. As primeiras disputas entre PSDB e PT e as
últimas duas nas quais PSL e PL enfrentaram o PT. Mudaram os atores que
disputam contra o PT mas também a natureza do voto de quem estava do outro lado
[como antagonista] do PT foi mudando ao longo do tempo. Não temos uma
constância no “voto azul”.
Valor: O “voto azul”, em contraponto àquele no PT,
mudou irremediavelmente?
Nicolau: Para ser
justo, devíamos trocar a cor. Talvez seja mais justo com o que aconteceu ao
longo do tempo entender que o conflito com o PSDB era um conflito entre
vermelhos e azuis e, agora, entre vermelhos e marrons [cor usada inicialmente
por milícias nazistas], ou pretos [cor da ultradireita europeia]. É outra cor.
O PSDB recebia o voto conservador e eventualmente até da direita, por inércia,
por ela não ter candidatos nesse campo disputando voto, mas ele não era a
expressão acabada da ultradireita, nem desse conservadorismo. [... ] O PSDB,
como era uma bancada grande, tinha forças políticas mais progressistas e forças
políticas mais conservadoras. A gente faz a continuidade no tempo porque era o
adversário do PT, mas há uma diferença que não é de grau, é de gênero.
Valor: A direita saiu fortalecida das eleições de
2022?
Nicolau: A eleição
mostra que uma parte do Brasil, metade do país, fez uma opção pela direita. E
que uma parte dessa direita se mobiliza pelas redes, pelas ruas. Isso me
parece, ainda que eu não goste de falar muito do futuro, que, se você colocar
numa equação, é quase impossível pensar a política brasileira sem entender que
o Congresso é dominado pela direita, que existe uma direita que perdeu na
eleição presidencial, mas ganhou nas eleições legislativas no âmbito estadual,
no Senado e em boa parte dos Estados importantes do Brasil, sobretudo no Rio,
em São Paulo e em Minas. Isso mostra uma força de um campo político: domínio no
Congresso. O tamanho da bancada do PP, do Republicanos e do PL, que chega aí a
36%. O tamanho dos partidos que apoiaram Bolsonaro, desse trio, tem mais de um
terço da representação da Câmara. É uma potência, uma força. Isso porque estou
ignorando esses outros partidos da direita não bolsonarista. [...] É
incontornável hoje pensarmos o Brasil desconsiderando o tamanho da direita, do
conservadorismo, com suas várias facetas. Essa faceta mais messiânica, que apareceu
nessas manifestações, passando pelo lado do agronegócio, a expressão cultural
deste mundo, a adesão dos sertanejos ao Bolsonaro.
Valor: O futuro presidente Luiz Inácio Lula da Silva
terá pela frente um mandato mais difícil que os anteriores?
Nicolau: Tem um Brasil
que é culturalmente e politicamente de direita e vai lidar de um jeito que não
sabemos muito bem [qual é] com o Lula. Mas eu imagino que o Lula não vai ter a
moleza que teve no primeiro governo, quando a oposição era o PSDB e o PFL, partidos
com bancadas expressivas mas com uma forma de atuar da velha política, uma
atuação basicamente parlamentar, de adiar uma votação, de fazer crítica no
parlamento. Essa [a nova] é uma direita extraparlamentar e ainda há essa
incógnita que é saber como Bolsonaro vai atuar politicamente. Ele, como pessoa
física, o que faz? Tem capacidade de mobilização nas redes mas tem também
capacidade de mobilização nas ruas. Ele leva as pessoas aonde vai, seja para
andar de motocicleta, seja para acompanhá-lo em comícios. Ela vai querer
continuar mantendo esse público ativado? Você não sabe, é uma incógnita.
Valor: O senhor vê alguma semelhança entre a situação
atual e a dos Estados Unidos, onde a derrota de Donald Trump em 2020 aprofundou
a divisão entre democratas e republicanos e, também, na sociedade?
Nicolau: Nesse momento
talvez estejamos no ápice da similitude com o modelo americano. São dois
campos, com uma divisão muito equilibrada. A disputa presidencial nos aproxima
dos Estados Unidos, quando olhamos essa divisão. Mas há dimensões no sistema
político brasileiro que nos afastam.
Valor: Quais são essas dimensões?
Nicolau: O Brasil é um país com poderes muito mais desconcentrados. Temos um número de partidos muito grande, o que desconcentra o poder. Temos o poder das eleições locais que são muito mais vibrantes que as eleições locais americanas. O papel do Supremo [Tribunal Federal] no processo político é mais contendente aqui do que nos Estados Unidos como um contrapoder, nem sempre indo na direção certa. Mas o Supremo esteve presente em várias das crises antes [das eleições]. [...] O Tribunal Superior Eleitoral teve uma boa presença no domingo (30) com a história das tentativas de bloqueio da Polícia Rodoviária Federal. E, depois, numa atitude firme e rápida no reconhecimento do Lula [como vencedor]. Temos uma estrutura política diferente da americana que eu acho que ajuda a distensionar. Mas, se olhamos hoje, estamos no ápice.
Valor: Os partidos tendem a se rearranjar no próximo
governo?
Nicolau: A discussão
dos próximos quatro anos, durante o governo Lula, é saber como que o sistema
político lateral, ou seja, quem não é PT e nem bolsonarista, vai se
reorganizar. [...] Não se trata só de olhar para o Bolsonaro, o bolsonarismo e
para o PT. O sistema político brasileiro está em processo de mudança com as
novas regras. Temos um Congresso muito mais compactado em termos partidários. A
tendência é que isso se aprofunde ainda mais com fusões, com mudanças do quadro
partidário nos próximos meses. E [é preciso] ver como esses partidos da direita
não-bolsonarista e do centro vão se comportar em relação ao Governo Lula. Tudo
indica que uma parte grande deve apoiar o Lula, o que ajuda a distensionar
também. A direita brasileira não é só bolsonarista, ainda que uma parte tenha
apoiado o Bolsonaro. Isso pode distensionar.
Valor: De que forma isso pode se dar?
Nicolau: O Lula, como
figura pública, ajuda nisso porque ele não é um polarizador. Ele não se
comporta como o Bolsonaro da esquerda, aprofundando a radicalização. Ele é o
contrário. Faz todo o esforço para diminuir a radicalização, para diminuir a
tensão. Essa característica do estilo do presidente provavelmente vai
contribuir para um distensionamento desse cenário que nós vimos. Agora, olhando
para hoje, nós viramos os Estados Unidos. Estamos no ápice dessa comparação com
a América, com os Estados Unidos quebrado. Mas a minha impressão é de que isso
tende a distensionar à medida que uma parte desses partidos que é da base
bolsonarista [apoie Lula]. Nós sabemos como funciona o sistema, o processo
decisório na Câmara, no Senado. Alguns deputados vão aderir, vão negociar,
porque têm que levar dinheiro para os Estados. [...] Isso tende a ficar menos
radicalizado, ao contrário do que aconteceu nos Estados Unidos. Quando o Trump
perde [em 2020], leva o Partido Republicano mais para a direita, vai para a
eleição de mid-term [para o Congresso] com uma agenda aprofundando esta
posição. E, do outro lado, os liberais também. Os democratas não fazem um
movimento para o centro. Eles vão radicalizando na pauta. E lá a divisão tem um
componente que nós não temos aqui, que é o urbano, o cosmopolita contra o
interior, a pequena cidade. A divisão no Brasil não tem esse caráter. Tem
outras [divisões], mas essa, não.
Valor: Em qual horizonte de tempo pode ocorrer o
distensionamento? Seria um movimento de médio prazo?
Nicolau: Temos um
Brasil partido, mas hoje, nesse momento, é a minha opinião... É só “feeling”.
[...] O meu sentimento, conhecendo um pouco o sistema político brasileiro, as
negociações em curso, a natureza de comando do Lula, é que provavelmente nós
não caminharemos para uma polarização à esquerda em contraponto à direita. Pelo
contrário, devemos ter um distensionamento, uma desamericanização, nos próximos
meses, anos. Não estou dizendo que a ultradireita não vai continuar tocando o
seu realejo. Que [ela] toque, é assim [mesmo]. Não há o que fazer com isso ou
com o que o Bolsonaro vai fazer. Não sei o que ele vai fazer. Agora, acredito
que de uma direita democrática para lá, a tendência é voltar o jogo
parlamentar, o jogo eleitoral anterior a 2015, que imperou até o último e o
penúltimo ano da Dilma. Ninguém aguenta mais, está todo mundo exausto. Não dá
para continuar nesse grau de mobilização.
Valor: Por quê?
Nicolau: Não é a forma
dominante de fazer política no Brasil. O Brasil não é um país cujo processo
decisório se dê por radicalização. Não foi assim na Constituinte, não foi assim
nos governos do Fernando Henrique, nem do Lula e nem numa parte significativa
do governo Dilma. Mas isso foi acirrado a partir dos conflitos de 2015 [os
protestos pelo impeachment da presidente] para cá. [...] [Esse modus operandi]
vai quebrar, vai ser interrompido [com a migração] para um território de maior
moderação independentemente dos derrotados de domingo.
Valor: A inconformidade de parte do eleitorado que
votou em Bolsonaro e se engajou em atos antidemocráticos não tende alimentar a
polarização no médio prazo?
Nicolau: O que eu vejo
sobre o presente é que realmente há dimensões de ativação de um eleitorado
bolsonarista que ficaram muito evidentes. Por exemplo, o mundo religioso,
basicamente de corte evangélico, tem sua justificativa [para a derrota]. Tenho
lido algumas mensagens de pastores muito indignados... Não vou dizer indignados
com Deus, porque eles sempre encontram uma passagem bíblica [para justificar o
ocorrido]. E a que eu vi é que Deus está testando, como em passagens bíblica do
Antigo Testamento em que Deus testa os povos, testa a paciência de Jó. Deus
estaria testando a paciência do povo ao trazer Lula de volta. Há passagens
bíblicas circulando nessa direção, mas eu vejo uma ativação no mundo religioso,
nesses movimentos, que mostra que uma parte do Brasil de direita, não vou dizer
indignada, não está aceitando. No fim das contas, se somarmos todo mundo que
foi nessas manifestações dá um número mínimo. Nós superestimamos porque ela [a
movimentação] existe, [porque] alguém continue na rua, pedindo intervenção
mesmo depois de uma derrota. Ou inventando histórias incríveis, teorias da
conspiração, para explicar a derrota. Isso é o que menos preocupa para mim. Mas
há uma ativação política. Há um Brasil de direita que não existia, que perdeu a
eleição por pouco, e que mostra uma capacidade de mobilização, nesses dias,
grande. Não imagino que isso persista no tempo. Até porque não faz sentido você
ficar meses, quando Bolsonaro já tiver saído do poder, daqui a algumas semanas,
[...] você continuar dizendo que não aceita o resultado. Isso daí tem uma
durabilidade.
Valor: Os protestos motivados pelo resultado do
segundo turno não podem se desdobrar em novos atos antidemocráticos?
Nicolau: Tenho muita dificuldade, cada vez mais, de falar sobre o futuro no Brasil. Porque todo mundo que falou sobre futuro, quando ele chegou, errou muito. Para dar um exemplo da eleição propriamente dita: havia uma visão catastrofista sobre o que aconteceria caso a eleição fosse ganha por uma pequena margem. Se você perguntasse em maio deste ano, todo mundo faria um prognóstico sobre o futuro que seria assim: se o Bolsonaro perder, ele não vai reconhecer o resultado, vai dizer que o resultado foi roubado. Ele disse em 2018, quando ganhou, por que não iria repetir em 2022? Ele falava das urnas. Parou de falar recentemente. O Congresso votou e rejeitou a aprovação do voto impresso. Ele fez em muitas “lives”, em muitos discursos uma campanha [contra a urna eletrônica] e chegou a dizer que não reconheceria o resultado. Havia uma outra versão que dizia que dificilmente as polícias, as milícias, os setores armados que apoiam Bolsonaro aceitariam a derrota e teríamos motins, rebeliões no domingo, logo após a derrota. [...] A versão que efetivamente aconteceu foi muito diferente disso. Ou seja, Bolsonaro perdeu, não reagiu imediatamente, não houve reação nenhuma das forças militares. Apareceram evidências de protestos, alguns pacíficos, alguns revelando uma extrema-direita no Brasil, outros com contorno quase religioso, apareceram tentativas de protestar fechando estradas Mas isso não era o que se imaginava. O que se imaginava era um cenário muito mais negativo. Então, tenho muita prudência de falar do futuro porque a probabilidade de errarmos é muito grande. O que Bolsonaro vai fazer da vida? Não sabemos. Vai para o Rio? Vai morar em São Paulo? Vai correr o Brasil? Vai ativar as bases [políticas]? Vai fazer “lives”, motociatas? Os partidos bolsonaristas, uma parte deles vai aderir ao Lula? A gente entra num grau de especulação gigantesco sobre o futuro. Então eu prefiro falar sobre o presente.
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