O Globo
Resumir o ano numa palavra não há de ser
tarefa das mais fáceis, mesmo para grupos bem restritos
A escolha da “palavra do ano” é uma prática
recente, mas já consolidada — pelo menos em países de língua inglesa. As mais
comentadas são as feitas pelos dicionários Oxford e Merriam-Webster, levando em
conta uso e relevância cultural.
No Brasil, nos últimos cinco anos as escolhidas (por uma consultoria e um instituto de pesquisa) foram “mudança” (2018, possivelmente devido à eleição de Bolsonaro), “dificuldades” (2019, talvez por causa do governo Bolsonaro), “luto” (2020, idem), “vacina” (2021, ibidem), “esperança” (2022, certamente pelo fim do governo Bolsonaro) e “mudanças climáticas” (2023, ampliando o conceito de “palavra”, reconhecendo o ano mais quente já registrado e evitando retomar o ciclo de mudança, dificuldade, dor, frustração, esperança — de que não conseguimos sair). “Resiliência” — um dos substantivos mais insuportavelmente resilientes dos últimos tempos — esteve na disputa, mas não resistiu.
(Em Portugal, a palavra de 2023 foi
“professor”. Em 2020 tinha sido “saudade” e, em 2018, “enfermeiro”. Não espanta
que tanto brasileiro esteja se mudando para lá.)
A palavra-chave de 2023, para o Dicionário
Oxford, foi “rizz” — gíria nada carismática para “carisma”, e que há de ter
entre os anglofalantes a mesma perenidade de “cocota” ou “boko moko” entre nós.
Em 2022 — ano da invasão da Ucrânia, da crise energética na Europa e da revolta
das mulheres no Irã — fora a vez de “goblin mode” (algo como “em modo duende”,
ou “tô nem aí”). Sintomático, não? Não mais que em 2020, quando não se chegou a
palavra nenhuma.
Para o Merriam-Webster, a palavra de 2023 foi
“autêntico” — cuja etimologia remete a algo original, que se fez por si mesmo.
Não deixa de ser um paradoxo nestes tempos em que dois dos assuntos mais
relevantes foram a inteligência artificial e as notícias falsas.
Resumir o ano numa palavra não há de ser
tarefa das mais fáceis, mesmo para grupos bem restritos. Os botafoguenses
ficaríamos indecisos entre “decepção”, “fracasso” e um palavrão bem hirsuto.
Para 2024, já há fortes candidatas.
“Terrorista”, que valeu de imediato para quem
invadiu e depredou as sedes dos três Poderes no 8/1 em Brasília, mas só depois
de muita hesitação veio a ser usada para quem invadiu, sequestrou, violentou e
assassinou no 7/10 em Israel.
“Genocídio”, largamente usada para o governo
Bolsonaro e para a resposta de Israel ao Hamas — mas
não para o que a Rússia fez
(e continua a fazer) na Ucrânia.
“Pardo”, um preto de Schrödinger: é preto
quando interessa inflar as estatísticas da desigualdade e da violência racial;
deixa de ser quando tem alguma preeminência (e aí o que conta é o preto raiz).
Correndo por fora, mas com boas chances,
surge “suspeição”. Aplica-se à nomeação de Sergio Moro para
o Ministério da Justiça, depois do lawfare da Lava-Jato — mas não à de Ricardo
Lewandowski para o mesmo posto, depois de todos os bons serviços
prestados ao PT.
Por fim, as autênticas e carismáticas
“democracia” — apesar de ter se tornado de uso exclusivo da esquerda — e
“liberdade (de expressão)” — monopólio da direita. Como ter democracia sem
liberdade e vice-versa é um dilema que — parafraseando Ritchie e Bernardo
Vilhena — nenhum sistema sabe resolver.
Nenhum comentário:
Postar um comentário