terça-feira, 5 de março de 2024

Luiz Schymura* - É preciso conter os programas com renúncias fiscais

Valor Econômico

Em muitos casos, a profusão de MEIs que vêm sendo abertos pode ser apenas uma forma disfarçada de emprego convencional

O surgimento de novas empresas é tido como um importante indicador do dinamismo de uma economia, pois sugere a força do empreendedorismo. Sob essa ótica, o Brasil vem apresentando um desempenho muito expressivo ao longo dos últimos 15 anos. Em 2009, foram abertas 750.248 empresas, número que saltou para 3,9 milhões em 2023. De fato, foi um pulo muito grande. O que estimula a curiosidade e, por consequência, a busca pelo entendimento do que está por trás desse quadro. Ao colocar uma lupa nos dados, é fácil notar que o surgimento de novos microempreendedores individuais (MEIs) explica quase inteiramente essa disparada na criação de empresas no Brasil.

Em 2009, os MEIs representavam 8,4% das empresas abertas. Com o passar dos anos, os MEIs passaram a ocupar um lugar de amplo destaque, correspondendo, a partir de 2019, a algo como 75% do total das empresas abertas anualmente no país. Dessa forma, caso sejam retirados os MEIs da amostra, o total de novas empresas no Brasil seria de 980,9 mil em 2023, frente às 687,3 mil abertas em 2009. Ou seja, um avanço bem mais modesto.

Em função da impressionante expansão do montante de MEIs, uma primeira pergunta desponta naturalmente: com que finalidade foram constituídos os MEIs? O instituto do MEI foi criado em 2008 pela Lei Complementar 128, como um sistema pelo qual, em tese, trabalhadores por conta própria, normalmente com ocupações modestas, poderiam se formalizar e adquirir um CNPJ, com esquema pesadamente subsidiado de pagamento de impostos e contribuição previdenciária. A ideia, claro, era levar a formalização, e seus muitos benefícios, a grandes contingentes de trabalhadores autônomos na informalidade.

No MEI, o procedimento de formalização é gratuito e simplificado, com inscrição imediata no Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas (CNPJ). O MEI passa a poder emitir nota fiscal e incorre em baixo custo mensal de tributos e contribuições previdenciárias (ISS, ICMS, INSS), com valor fixo e recolhimento em uma única guia. No caso do INSS, a contribuição mensal é de 5% do salário mínimo vigente, com cobertura previdenciária, limitada a um salário mínimo, que inclui benefícios como aposentadoria, salário maternidade e auxílio-doença, além de pensão por morte e auxílio-reclusão para dependentes.

Como se vê, caso seja avaliado sob o prisma da adesão, o MEI é um grande sucesso. No entanto, embora tenha tido muita aceitação, fica a questão: a introdução do modelo MEI atendeu às expectativas? Meus colegas Janaína Feijó, Silvia Matos, Fernando Veloso, Fernando Barbosa Filho e Paulo Peruchetti creem que não.

Segundo a análise dos pesquisadores, há fortes indícios, em diferentes fontes de dados, de que boa parte desses MEIs não corresponde de fato a microempreendedores na acepção precisa da palavra. Dessa forma, trata-se de pequenos negócios que têm dificuldade de ganhar escala e contribuir para o aumento da produtividade no país. Em muitos casos, a profusão de MEIs que vêm sendo abertos pode ser apenas uma forma disfarçada de emprego convencional, propiciando redução nos encargos incorridos com tributos e contribuições previdenciárias.

Para piorar o cenário, em vez de se estar trabalhando por um aprimoramento no MEI, as principais forças políticas sinalizam ampliação do programa. Assim, o que está em tramitação no Congresso é o aumento do limite de faturamento anual dos MEIs dos atuais R$ 81 mil para a faixa de R$ 144,9 mil (incluindo também a possibilidade de contratação de até dois funcionários).

Na verdade, a experiência vivida com o MEI parece fazer parte da cultura político-institucional brasileira. Outras políticas públicas com vantagens tributárias expressivas também acabam gerando situações análogas às do MEI. Exemplos não faltam. Para ficar no debate atual, Executivo e Legislativo vêm negociando a continuidade do programa de desoneração da folha de pagamentos de 17 setores produtivos e do Perse (Programa Emergencial de Retomada do Setor de Eventos).

A desoneração da folha de pagamentos foi implantada como medida temporária em 2012, tendo sido prorrogada desde então. Sem entrar no mérito do programa, a ideia à época era evitar uma piora no mercado de trabalho naquele período percebido como crítico. O momento crítico passou e a desoneração da folha ganhou vida própria. De certa forma, algo parecido ocorreu com o Perse. Instituído em 2021 em razão da paralisação por causa da pandemia de covid, o Perse teve como objetivo aliviar prejuízos do setor de eventos. A pandemia terminou, mas o programa ficou.

Esses programas acabam custando ao Erário, em termos de renúncia fiscal anual, algumas dezenas de bilhões de reais. Por isso, embora tenham motivação clara e objetiva quando são criados, precisam de acompanhamento criterioso durante sua execução. Na maioria das vezes, a impressão de um programa que soa como perene é a que prevalece.

Assim, diante da realidade político-institucional brasileira, no que se refere aos programas que embutem tratamento diferenciado na tributação das empresas, algumas medidas precisam ser introduzidas. Em primeiro lugar, toda legislação relativa ao assunto em questão deve contemplar a frequente prestação de contas do programa. Com isso, é possível levantar e detalhar os resultados auferidos, bem como constatar se o fato gerador que motivou a aprovação da política ainda permanece. Em segundo lugar, caso a motivação para a confecção original do programa ainda esteja presente e caso ainda haja interesse em sua manutenção, a exposição de motivos com a proposição de aprimoramentos também deve ser um documento a ser anexado à prestação de contas. Afinal, com o aprendizado adquirido na execução do programa, as lições tiradas podem vir a ser incorporadas.

Certamente, a periodicidade na entrega da prestação de contas e da proposição de aprimoramentos não é a tão sonhada “bala de prata”, mas, pelo menos, pode ajudar na transparência e no frequente debate público sobre os programas.

*Luiz Schymura é pesquisador do FGV Ibre

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