terça-feira, 5 de março de 2024

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

Polícia se ressente da falta de efetivo e de integração

O Globo

Radiografia das forças policiais detectou redução de quadros e deficiências em funções essenciais

O Brasil tem dois policiais para cada grupo de mil habitantes, revelou o estudo “Raio X das Forças de Segurança Pública”, uma radiografia das polícias Militar, Civil e Guardas Municipais feita pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Não é um número muito distante dos índices nos Estados Unidos, que oscilam entre 1,8 e 2,6 dependendo do estado, segundo a Associação Internacional de Chefes de Polícia. As polícias brasileiras, porém, enfrentam dificuldades próprias.

Entre 2019 e 2022, houve aumento de 23,5% no número de Guardas Municipais (de 1.188 para 1.467, num país com 5.570 municípios). Mas a reação de prefeitos para suprir as limitações estaduais no combate à violência tem sido incapaz de compensar as deficiências das PMs e Polícias Civis. Tem havido perda substancial nos efetivos dedicados ao policiamento, atividade em que a mão de obra é fundamental para o êxito.

Mesmo nas Guardas Municipais, houve diminuição de 4,3% nos quadros, apesar do aumento dos municípios com força policial própria. Nas PMs, responsáveis pelo policiamento ostensivo, a redução entre 2013 e 2023 foi de 6,8%. Nas Polícias Civis, de 2%. Há mais de 30% de vagas abertas nas duas polícias. Isso significa que faltam 180 mil PMs e 57 mil agentes civis.

Apesar de haver menos PMs nas ruas, as corporações continuam a ceder policiais a Tribunais de Justiça, Tribunais de Contas, Assembleias Legislativas e Ministérios Públicos. Sem considerar São Paulo, Piauí, Alagoas e Roraima, que não cederam essas informações ao estudo, havia 11.336 PMs fora de suas funções em 2022, quase o equivalente a toda a PM do estado de Mato Grosso. Só no Rio, onde essa prática é frequente há muito tempo, eram 2.621, o maior contingente entre os estados.

Ainda que a perda de efetivo traga desafios significativos, se as polícias operassem com integração e razoável base técnica e tecnológica, é provável que a população não apontasse a insegurança entre seus principais problemas. O levantamento do FBSP revela a indigência, em boa parte do país, da “polícia técnica”. Nem todos os estados têm todas as especialidades de peritos necessárias à investigação de crimes. Mato Grosso do Sul e Paraná não têm médicos legistas. Acre, Amazonas, Piauí, Ceará, Bahia, Maranhão, Rio Grande do Norte, Espírito Santo e Minas Gerais não contam com papiloscopistas, especializados em colher indícios como impressões digitais.

Tudo isso resulta na baixa resolução de crimes. O Instituto Sou da Paz obteve informações de 18 estados e constatou que apenas 33% dos homicídios cometidos em 2020 e 35% dos perpetrados em 2021 alcançaram algum nível de esclarecimento. A mensagem enviada à sociedade é de impunidade e incentivo ao crime.

É indiscutível que o aparato policial dos estados precisa ser repensado e reforçado. Não se deve menosprezar a importância da redução de efetivos das polícias. Mas não basta contratar. É preciso também repensar a forma de operação das polícias, para que se tornem cada vez mais integradas, no espírito do Sistema Único de Segurança Pública (Susp), até hoje no papel. Sem isso, será mais difícil, e talvez não se consiga, melhorar a qualidade das operações policiais como o país exige e necessita.

Projeto do governo para trabalho por aplicativo deixa a desejar

O Globo

Proposta não contempla entregadores e carrega o ranço de uma visão ultrapassada das relações trabalhistas

O projeto que o governo Luiz Inácio Lula da Silva enviou ontem ao Congresso para regulamentar o trabalho por aplicativos — promessa feita desde a campanha eleitoral — tem o mérito de criar regras para um mercado que, a despeito do crescimento nos últimos anos, ainda opera no limbo. Mas peca por contemplar apenas os motoristas, deixando de lado os entregadores, e ainda carrega certo ranço de uma visão ultrapassada das relações trabalhistas.

Em maio passado, o governo criou um grupo de trabalho para discutir propostas para o setor. A expectativa era que houvesse um esboço de regulamentação ainda no primeiro semestre. Depois de quase um ano, o Planalto apresentou um projeto capenga, que não superou o impasse entre empresas e entregadores. O ministro do Trabalho, Luiz Marinho, promete retomar as negociações com o setor num segundo momento. Mas não faz sentido um projeto regulando apenas parte do trabalho por aplicativo.

Pesquisa recente estimou haver no Brasil 1,3 milhão de motoristas e 385 mil entregadores. Passou da hora de estabelecer regras mínimas para reduzir a incerteza jurídica que paira sobre essas atividades. Qualquer regulamentação precisa preservar a autonomia dos trabalhadores e a flexibilidade do trabalho. Sem regras, os tribunais têm sido levados a exercer um papel que cabe aos legisladores.

Em relação aos motoristas de aplicativos, o projeto do governo avança ao estabelecer proteção previdenciária. Pela regulamentação proposta, eles recolherão 7,5% para a Previdência, e as empresas 20%. Os percentuais incidirão sobre 25% do valor repassado aos motoristas pelas plataformas. Com a contribuição, eles passarão a ter direito a aposentadoria por idade, pensão por morte, auxílio-doença e outros benefícios sociais.

Ao mesmo tempo, o projeto revela como a visão retrógrada das relações trabalhistas acaba por tolher a flexibilidade inerente a esse tipo de atividade. A proposta prevê jornada de oito horas, podendo se estender a 12 horas se houver acordo com sindicatos. Estabelece também um piso de R$ 32,09 por hora rodada, com valores mínimos para as saídas. Tais medidas engessam os custos para as empresas e reduzem a autonomia do profissional. A perda de flexibilidade encarece o serviço e pode reduzir a oferta de trabalho.

Pelo menos, o projeto evita a armadilha de criar vínculo empregatício entre trabalhadores e aplicativos, foco constante de ações na Justiça. O texto estabelece “inexistência de qualquer relação de exclusividade entre trabalhador e empresa”. A ideia é que os motoristas façam parte de uma nova categoria, chamada de “trabalhador autônomo por plataforma”.

O governo ainda deve uma regulamentação para os entregadores, que vivem situação tão incerta quanto a dos motoristas de aplicativos. A proposta incompleta levada ao Congresso atesta a incapacidade do governo na negociação. Ter alguma regra para serviços de entrega, ainda que não a ideal, seria melhor do que não ter nenhuma.

Brasil entra na disputa por investimentos verdes

Valor Econômico

País precisa oferecer ambiente macroeconômico estável e relação dívida/PIB em queda

Já um tanto atrasado, o Brasil entrou na disputa pelos investimentos privados estrangeiros para a transição para uma economia descarbonizada. Os volumes de recursos necessários são grandiosos. O investimento mundial em descarbonização somou US$ 1,3 trilhão no ano passado, e apenas 6% disso foi gasto na América Latina, segundo estimativa do Glasgow Financial Alliance for Net Zero (GFANZ), o que dimensiona o tamanho do desafio. O GFANZ reúne 675 instituições financeiras em 50 países e foi criado para acelerar a descarbonização da economia. A rede também avalia que as economias emergentes precisarão investir US$ 1 trilhão por ano em energia limpa ao fim desta década.

O primeiro passo foi a parceria estabelecida entre o BNDES e o GFANZ para a criação de uma plataforma que exiba os projetos brasileiros de descarbonização para atrair a participação de investidores nacionais e estrangeiros. A intenção é acelerar os investimentos necessários para o Brasil cumprir a meta de zerar as emissões líquidas de gases de efeito estufa até 2050, conforme acertado no Acordo de Paris.

Ainda não há data para o início do funcionamento da plataforma brasileira, nem detalhamento do tipo de projetos que serão abarcados, embora transição energética e recuperação de floresta sejam dois focos. A Indonésia e o Vietnã são dois dos países em desenvolvimento que já têm plataformas semelhantes no ar. Apesar de estar defasado em relação a outros países que também brigam por recursos, o Brasil atrai pelo valor dos projetos que pode oferecer.

Em seguida, o governo lançou o Programa de Mobilização de Capital Privado Externo e Proteção Cambial Eco Invest Brasil para incentivar a entrada de capital estrangeiro no país para investimentos em transição energética. Para reduzir o custo dos empréstimos e os riscos de oscilação do real ante o dólar, o programa vai oferecer mecanismos de proteção cambial. Participam da iniciativa o Banco Interamericano do Desenvolvimento (BID), o Banco Mundial e o governo britânico.

O BID será o principal parceiro no programa de seguro cambial, comprometendo US$ 5,4 bilhões no total (R$ 27 bilhões), sendo US$ 3,4 bilhões em derivativos cambiais e US$ 2 bilhões em operações de swaps e linhas de crédito para empresas. O BID vai empregar os US$ 3,4 bilhões na aquisição de instrumentos de proteção no exterior a custos mais favoráveis para oferta no mercado brasileiro, aproveitando as vantagens de ter rating “triplo A”. Os instrumentos serão repassados ao Banco Central (BC), sem acarretar risco de crédito ou cambial.

A falta de proteção cambial a custos e prazos adequados é uma barreira para a atração de recursos estrangeiros para o Brasil. No mercado doméstico, os derivativos de proteção cambial geralmente têm prazos curtos. Segundo o Ministério da Fazenda, em fevereiro, os contratos futuros de câmbio em aberto com prazo de mais de 10 anos somam apenas R$ 1 bilhão. Até cinco anos, são R$ 15 bilhões; outros R$ 44 bilhões estão em instrumentos de proteção de até dois anos, e a grande maioria, R$ 134 bilhões, cobria apenas até 12 meses.

Além da parceria para disponibilizar proteção cambial, o Eco Invest Brasil vai ter quatro novas linhas de crédito com uso de recursos do Fundo Clima, que será abastecido por US$ 2 bilhões do BID e mais US$ 1 bilhão do Banco Mundial. Pelos critérios do Fundo Clima, os projetos precisam ter como objetivo diminuir os impactos das mudanças climáticas. O Fundo Clima também deverá ser reforçado em R$ 10,4 bilhões com a emissão de títulos verdes pelo governo federal.

Uma das linhas do Eco Invest Brasil é a chamada “blended finance” para baratear o preço da proteção. A linha pode chegar a 25 anos, dependendo da estrutura do projeto. Uma segunda linha, a “FX liquidity facility”, também tem prazo de até 25 anos e fica à disposição do investidor que pagar uma taxa por isso, o que justifica todo esse período. Se ocorrer um evento cambial, a linha vai prover liquidez para manter a capacidade de o projeto honrar as obrigações em moeda forte sem afetar o fluxo de caixa. Uma terceira linha é para instituições financeiras que desejem viabilizar derivativos no mercado local. E a quarta apoia a estruturação de projetos dentro da transição energética, com prazo de 12 anos e juros a serem definidos pelo Conselho Monetário Nacional (CMN).

Em artigo no Valor (27/2), os economistas Winston Fritsch e Márcio Garcia, que realizam pesquisa patrocinada pelo BID sobre mecanismos para trazer financiamento privado estrangeiro para projetos de impacto na transição climática no Brasil, salientam a importância de o país atrair capital externo privado uma vez que possui potencial para investimentos verdes, mas baixo nível de poupança interna e acesso limitado às fontes de bancos multilaterais.

Advertem, porém, que não basta ter bons projetos e proteção cambial, ressaltando a importância de o país oferecer um ambiente macroeconômico estável, uma relação entre dívida pública e PIB em queda e balanço de pagamentos administrável. Esses elementos determinam o risco de crédito do país e o custo do dinheiro, influenciando o apetite do investidor pelos projetos.

Verba de emendas deve seguir critérios técnicos

Folha de S. Paulo

É democrático que o Congresso decida sobre o Orçamento, mas prioridade para currais eleitorais prejudica a população

O governo federal estima que vá desembolsar R$ 2,18 trilhões neste ano, excluídos os gastos com juros. Mais de 90% desses recursos vão para despesas obrigatórias, como aposentadorias, salários e os pisos constitucionais da saúde e da educação. Resta algo em torno de R$ 200 bilhões para custear a máquina, prestar serviços e investir.

Por meio de emendas ao Orçamento, deputados e senadores podem definir o destino de cerca de 23% desse montante, mas reclamam da execução de tais dotações, da liberação e do gasto efetivo. Na verdade, pressionam o governo com agressividade.

Chegam a pedir a saída de ministros, como Nísia Trindade (Saúde), de quem cobram relatórios sobre o uso do dinheiro —o que seria correto, se o objetivo fosse meritório.

Demandar e obter as verbas aprovadas não resulta, necessariamente, em corrupção, embora haja casos investigados pela Polícia Federal. O fato de que parcela do Orçamento seja destinada a municípios tampouco é motivo, por si só, de condenação. O conjunto da obra é que está em questão.

O investimento federal não passou de R$ 60 bilhões em 2023. Parte relevante é pulverizada em despesas paroquiais, de compra de caixas d’água a capacetes para a polícia, que bem podem ser necessidades, mas não são consideradas do ponto de vista do uso mais eficiente dos recursos federais.

Não há plano geral de avaliação do mérito das emendas e de uso alternativo do dinheiro a elas destinado. Ademais, a pulverização dificulta a reunião de recursos para investimentos maiores, que resolvam problemas de infraestrutura, sejam eles sanitários, de transporte, de pesquisa científica ou de comunicações, por exemplo.

A distribuição política de verbas também prejudica a conclusão de obras, já que é preciso agradar a mais currais eleitorais, em vez de seguir a ordem de prioridade da execução de trabalhos.

O problema é histórico. Nos últimos cinco anos, contudo, se agravou, dado o fortalecimento do Parlamento, que empareda o Executivo por meio de pressão política e barganhas para aprovação de medidas. Atualmente, o Congresso controla ao menos 30% da verba de sete ministérios de Lula.

O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), um dos grandes artífices dessa ofensiva, alega com ligeireza que, pela Constituição, o Congresso tem o poder da emenda.

Por óbvio não se pretende cassar o direito do Legislativo de manejar parte do Orçamento e monitorar sua execução. Trata-se tão somente de fazer com que os recursos sejam distribuídos e fiscalizados de modo republicano e eficaz.

O embrião do real

Folha de S. Paulo

URV completa 30 anos; plano deu certo pois não se limitou a um lampejo criativo

Com o lançamento da Unidade Real de Valor (URV), em 1º de março de 1994, foi posta em prática a primeira fase da engenhosa reforma monetária que levaria ao lançamento da atual moeda brasileira, o real, quatro meses depois.

O marco do plano mais presente na memória coletiva foi a troca das cédulas, mas a transformação teve início com a URV, mecanismo de indexação que buscou o alinhamento dos preços —para que a população recuperasse a percepção do valor dos bens e serviços.

Na época, 1 URV correspondia a US$ 1, com reajustes diários na moeda de então, o cruzeiro real. Depois, as cifras em URV foram convertidas em reais.

A consistência técnica e jurídica do Plano Real foi um diferencial decisivo em relação às tentativas anteriores. Os fracassos que o precederam proporcionaram um aprendizado fundamental.

A negociação para conversão dos salários em URV foi talvez o maior desafio político da empreitada, dada a pressão dos sindicatos por ganhos no poder de compra.

Para vencer o ceticismo, o governo Itamar Franco e a equipe do então ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso, também inovaram ao fazer a opção política correta. Buscaram o apoio da opinião pública e do Congresso com transparência, sem malabarismos, congelamentos ou intervenções atabalhoadas.

O plano não se esgotou na reforma monetária. Deu início a uma transformação institucional e econômica de grande envergadura.

Os passos seguintes foram esforços para o equilíbrio do Orçamento, num percurso até hoje acidentado, saneamento do sistema financeiro e das contas dos Estados, privatizações e abertura econômica.

Socialmente, o impacto foi a proteção dos salários contra a inflação, o que propiciou melhoria da distribuição de renda, continuada nas décadas seguintes com a ampliação da rede de proteção social.

Sem a URV, seria muito mais difícil conter a escalada dos preços no Brasil —peculiar devido aos mecanismos arraigados de correção monetária— com os instrumentos tradicionais de política fiscal e de juros. O plano foi bem-sucedido, porém, porque não se limitou a um lampejo de criatividade.

O absurdo tribunal racial

O Estado de S. Paulo

As ‘bancas de heteroidentificação’ se converteram em tribunais raciais nas universidades do País, decidindo subjetivamente quem é negro e, portanto, titular de direito à vaga como cotista

Um espectro ronda a política de cotas adotada no Brasil para democratizar o acesso ao ensino superior: as bancas de avaliação fenotípica. Essas comissões, chamadas “bancas de heteroidentificação”, estão no epicentro da crise que estourou na Universidade de São Paulo (USP) no caso do cancelamento da matrícula do estudante Alison dos Santos Rodrigues, após a banca rejeitar sua autodeclaração como pardo. Alison e pelo menos mais um aluno processaram a universidade por terem perdido as vagas para as quais foram aprovados. A USP não está sozinha: houve casos similares em outras universidades que adotam o mesmo modelo – caso da Universidade de Brasília (UnB), por exemplo.

Não há outra forma de definir tais comissões senão como uma espécie de “tribunais raciais”, compostos por pessoas chamadas a decidir a raça de um estudante e selar seu destino de ingresso ou recusa numa universidade. Parece algo muito mais afeito a regimes racialistas do que a um país que pretende genuinamente compensar, de alguma forma, os séculos de escravidão e discriminação racial.

Desde o início da sua adoção, em 2004, as cotas permitiram ao Brasil quase quadruplicar o ingresso de pessoas negras nas universidades. Em 2023, na revisão da política, o Congresso ampliou as ações de inclusão nas universidades. As cotas também foram fundamentais para que o País avançasse no debate sobre as relações sociais.

Tais conquistas, assim como a chancela do Legislativo e do Judiciário, não isentam o debate de erros, desvios e excessos. Integram esse grupo de equívocos as tais “bancas de heteroidentificação”. Criadas por pressão de movimentos negros – preocupados com as denúncias de fraudes nos processos seletivos –, essas comissões avaliam a cor da pele, os cabelos e a forma da boca e do nariz de jovens que se declaram pretos ou pardos e foram aprovados pelo regime de cotas. Uma primeira avaliação é feita com base na foto dos candidatos, considerando a análise fenotípica. Se rejeitada a matrícula, os candidatos são convocados para uma oitiva presencial ou virtual. No caso do estudante Alison, a oitiva durou apenas o suficiente para ele ler sua autodeclaração.

Na prática, a tal banca tratou esse estudante como mentiroso e não suficientemente negro para reivindicar uma cota. E tudo isso é feito sem a menor objetividade. Qual a medida que determina a cor da pele? Quantos centímetros tem um nariz que se considera adequado para a cota? E qual o tipo certo de lábio para avaliar se o candidato está apto? No século 19, Lombroso e

Gall achavam que era possível determinar se alguém tinha propensão ao crime apenas pelo formato e as saliências do crânio. Nas “bancas de heteroidentificação”, a frenologia se atualizou, agora para saber se alguém é negro o bastante. A pseudociência a serviço das boas causas determina quem segue adiante e quem fica pelo caminho.

Ocorre que nada disso encontra respaldo na Constituição, que estabelece a igualdade de todos perante a lei e condena veementemente o racismo.

O Brasil decidiu incluir pardos à população negra – que, segundo a classificação oficial, é formada por pessoas pretas e pardas. Parte dos movimentos identitários costuma considerá-los em sua contabilidade racial para celebrar os números de uma maioria negra, como atestou o Censo do IBGE divulgado no ano passado. Segundo os dados, o número de pessoas pardas pela primeira vez superou o número de brancos, tornando-se o maior grupo étnicoracial do Brasil. Os pardos passaram a somar 92,1 milhões de habitantes, equivalente a 45,3% da população. Brancos somam cerca de 43,5% e pretos são apenas 10,2%. No país da miscigenação, pardos estão mais confiantes para se declararem como tal, mesmo que a maioria desse grupo não esteja imune, assim como os pretos, à discriminação.

Aos defensores dos tribunais raciais, no entanto, importa restringir ao máximo as vagas disponíveis aos estudantes considerados suficientemente pretos. Em nome desse imperativo, a discriminação racial, malgrado ser ilegal e imoral, é considerada perfeitamente válida.

A farra das armas

O Estado de S. Paulo

Grau de negligência do Exército na emissão de licenças para compra de armas por CACs, como revelou o TCU, é inadmissível num país já tão subjugado pelas organizações criminosas

O Brasil não é particularmente conhecido pelo alto padrão de qualidade de seus serviços públicos, à exceção de algumas ilhas de excelência. Contudo, mesmo para um Estado com esse histórico de negligência em determinadas áreas da administração, até pouco tempo atrás era inimaginável a mera possibilidade de homicidas, traficantes e membros de organizações criminosas receberem uma licença para comprar legalmente armas de fogo e munições – inclusive de grosso calibre. Pois isso aconteceu no País. Não uma vez nem duas: foram milhares de vezes ao longo dos quatro anos do tenebroso governo de Jair Bolsonaro.

O plano de armar a população até os dentes por meio da concessão de licenças para Caçadores, Atiradores e Colecionadores (CACs) pelo Exército – executado com denodo por Bolsonaro sob a falácia de que “um povo armado jamais será escravizado” – era temerário por si só, ainda que a autorização para compra de armas de fogo fosse massificada apenas entre os cidadãos com ficha criminal imaculada. Não foi o caso. Um detalhado relatório feito por técnicos do Tribunal de Contas da União (TCU), ao qual o Estadão teve acesso, revelou que pistolas, fuzis e metralhadoras foram comprados legalmente, pasme o leitor, por criminosos condenados pela Justiça – uns cumprindo pena; outros, foragidos – por meio da apresentação de certificado de CAC.

A frouxidão do Exército no processo de concessão desse documento a torto e a direito durante o governo passado não é novidade. Em julho de 2022, quando vieram a público informações sobre fraudes e erros no processo de emissão dos certificados de CAC para cidadãos que claramente não poderiam recebêlos, alertamos para o problema duas vezes nesta página (ver Incúria perigosa, de 23/7/2022, e CAC, bom negócio para o PCC, de 27/7/2022). O TCU, contudo, tem o mérito de revelar a dimensão desse descuido, pois o relatório da Corte de Contas abrange a emissão dos certificados entre 2019 e 2022, ou seja, durante todo o mandato de Bolsonaro, quando o armamento desenfreado da população foi convertido em política de governo.

Segundo o TCU, nada menos que 5.235 pessoas receberam novos registros de CAC ou renovaram registros anteriores mesmo havendo processo de execução penal contra elas por crimes como tráfico de drogas, homicídio e lesão corporal, entre outros. Quase 2,7 mil pessoas obtiveram do Exército licença para comprar armas de fogo mesmo sendo alvo de mandados de prisão em aberto. Num recorte que seria risível se não fosse trágico, o TCU apontou ainda que 94 pessoas declaradas mortas no período “compraram” 16.669 munições em 67 processos registrados.

Por fim, a partir de um perspicaz cruzamento entre as bases de dados do Sistema de Gerenciamento Militar de Armas (Sigma) e o CadÚnico, os técnicos do TCU identificaram que 22.493 cidadãos que constam na base do governo federal para concessão de benefícios destinados à população de baixa renda foram autorizados pelo Exército a comprar armas e munições cujos valores são sabidamente altos. Como é óbvio, tudo indica que essas pessoas foram usadas como “laranjas” por organizações criminosas – e sabe-se lá qual é e onde está todo o poder de fogo adquirido em seus nomes por meio de fraude.

Eis o grau de irresponsabilidade de autoridades militares na emissão dessas licenças para aquisição de armas no Brasil, muitas das quais decerto foram parar nas mãos de quem atenta contra a vida de agentes do Estado e dos cidadãos em geral. Diante de números tão alarmantes, resta evidente que o Exército é incapaz de seguir fiscalizando a emissão de certificados de CAC nos moldes atuais, seja por falhas sistêmicas, seja por falta de mão de obra, como alega a instituição.

Algo tem de ser feito já. Para a sociedade, pouco importa se essa fiscalização permanecerá a cargo dos militares, o que implica rigorosa revisão de processos, ou se passará a ser responsabilidade da Polícia Federal, como querem alguns delegados. Um serviço público como esse tem de ser prestado por quem quer que se mostre à altura de sua relevância social.

Navalni e o ‘vírus da liberdade’

O Estado de S. Paulo

O Ocidente precisa retribuir a coragem dos dissidentes russos integrando-os à sua segurança

No sábado foi enterrada em Moscou a melhor esperança de uma ressurreição da liberdade na Rússia. Mas, parafraseando o que sobre a Igreja disse Tertuliano, o apologeta das primeiras comunidades cristãs, o sangue dos mártires é a semente da democracia. Mesmo sob a mira do Estado policial de Vladimir Putin, milhares de russos compareceram ao funeral do ativista Alexei Navalni na igreja Alivie Minhas Dores, cantando refrões como “Não à guerra” e “Putin assassino”, no maior desafio ao regime desde os protestos após a invasão da Ucrânia, em 2022. Após a morte de Navalni, pelo menos 450 pessoas foram detidas. Essa prova de coragem é o maior tributo a Navalni e também seu maior legado.

A morte de Navalni numa prisão no Ártico prova o quanto Putin teme essa coragem. Mas as sementes legadas por Navalni precisam ser cultivadas. “(Putin) se sente confiante de que não haverá repercussões”, disse o ativista Garry Kasparov. “Se provarem que ele está certo, sua confiança assassina aumentará.” Em 2021, o presidente americano, Joe Biden, prometeu consequências “devastadoras” se algo acontecesse com Navalni. “Se o sr. Biden e o restante do mundo livre quiserem dar esse golpe ‘devastador’”, disse Kasparov, “só precisam fornecer às mãos ucranianas as armas que elas precisam para desferi-lo.”

O Ocidente precisa assumir que a repressão na Rússia e a agressão à Ucrânia são parte da mesma guerra. “No meu tempo”, advertiu em artigo na Economist Natan Sharanski, que sobreviveu a 9 anos num gulag soviético, “políticos ocidentais compreendiam a escala da luta histórica e viam o destino dos prisioneiros políticos soviéticos como parte de sua própria segurança. Hoje não compreendem. E este é um erro de proporções históricas.”

Dissidentes catalisam a deterioração de regimes podres e por isso são aliados cruciais do mundo livre. Como disse Navalni em uma carta a Sharanski, eles são um “vírus da liberdade”. Sharanski lembrou o quão importante foi a política ocidental em três compartimentos nas relações com o Império Soviético: segurança, comércio e direitos humanos. Os soviéticos acreditaram poder tratar o último com palavras vazias. Mas “foi o elo entre o terceiro compartimento e os outros dois que levaram à morte do regime”. Para ele, é essencial que o Ocidente retome essa política: “O seu confronto com o regime de Vladimir Putin deveria consistir em fortalecer a dissuasão militar nas fronteiras com a Rússia, aumentar o apoio à Ucrânia e desenvolver uma política em relação aos dissidentes na própria Rússia”.

Esses dissidentes precisam ser considerados como prisioneiros da guerra de Putin. Isso significa condicionar, nos termos mais duros possíveis, a troca de espiões russos e as relações com a Rússia à sua libertação.

Por muito tempo Putin se acostumou a sorrir a cada manifestação de “grave preocupação” dos líderes ocidentais com as atrocidades cometidas por ele. Mas Navalni mostrou que esse tempo precisa ser sepultado. “Navalni foi um homem de coragem e ação”, disse Kasparov, “e somente coragem e ação podem honrá-lo agora.

Pela equidade, menos machismo e mais educação

Correio Braziliense

Na Alta Corte, a realidade é notória. Ao longo dos seus 133 anos, só três mulheres chegaram ao cargo de ministra — Ellen Gracie, Cármen Lúcia e Rosa Weber

A Constituição de 1988, resultado de um amplo pacto social, estabeleceu que todos são iguais perante à lei, não cabendo nenhum tipo de discriminação por raça, cor, etnia e gênero. Portanto, as oportunidades deveriam ser equânimes em todos os setores públicos ou privados. Mas a determinação da Carta Magna nem sempre foi obedecida tanto em relação à raça,cor e gênero, até mesmo pelo Judiciário. Nesse espaço, 40% dos juízes brasileiros são mulheres, mas só 25% são desembargadoras, e 18%, ministras. Homens brancos detêm a maioria dos cargos.

Na Alta Corte, a realidade é notória. Ao longo dos seus 133 anos, só três mulheres chegaram ao cargo de ministra — Ellen Gracie, Cármen Lúcia e Rosa Weber. A pressão para que outra mulher substituísse a ministra Rosa Weber, aposentada no ano passado, não surtiu efeito. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva escolheu o então ministro da Justiça Flávio Dino para o cargo. A atual composição do STF tem 10 homens e uma mulher, a ministra Cármen Lúcia. 

Às discussões sobre paridade nas instâncias do Judiciário seguem acesas. Ante a proximidade do 8 de Março — Dia Internacional da Mulher —, cresce a expectativa do Movimento pela Paridade no Poder Judiciário de que o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT) indique mulheres para as vagas abertas. Nenhuma mulher chegou a presidir a Corte. Entre os 47 desembargadores, 12 são mulheres. Em Minas Gerais, a paridade de gênero também está distante. As mulheres somam 33% no Tribunal de Justiça, 9% na Justiça Militar; 33% na Justiça Eleitoral e só 23% nos tribunais superiores. Realidades semelhantes estão reproduzidas na maioria dos estados.

Quando presidiu o STF e esteve à frente do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a ministra Cármen Lúcia, criticou a desequilíbrio de gênero e de raça a composição do Judiciário. Ela reconheceu a ausência e de juízes e juízas negras nos tribunais brasileiros. A então ministra Rosa Weber marcou sua despedida do CNJ e do STF defendendo maior presença feminina nas camadas superior da Justiça. Não foram poucas as mulheres advogadas ou integrantes do Judiciário que foram reconhecidas pelos colegas como merecedoras de ocupar elevados cargos na Justiça. Mas, por motivos inexplicáveis, foram preteridas no processo de escolha às vagas em aberto.l

Até agora, o Judiciário, nas suas mais diversas instâncias, não conseguiu avançar o suficiente para se tornar exemplo às demais instâncias de Poder, sobretudo ao Legislativo. A legislação eleitoral impõe cotas raciais, étnicas e de gênero. Ao fim das eleições, fica patente que a maioria das legendas partidárias não cumpriu as normas estabelecidas pela Justiça Eleitoral. As mulheres são minorias nas bancadas da Câmara e do Senado. O mesmo ocorre nas capitais, nas grandes e pequenas cidades. Em resumo, ainda há uma longo caminho para que a equidade e paridade estabelecidas pela Constituição sejam respeitadas. Que o Estado, por meio dos poderes centrais, seja exemplo para o restante do país.

Esse filtro por gênero e raça. identificado no Judiciário, éo mesmo adotado por outros setores do país. Cotas racia, sociais e tantos mecanismos para a construção de uma sociedade com mais igualdade e menos discriminação permanece como desafio a ser vencido no Brasil. As mulheres, mesmo conscientes de seus direitos, enfrentam obstáculos. O corporativismo masculino, em vários momentos, é barreira quase instransponível.

Ainda que não prevaleça  velho adágio: “Atrás de um grande homem, há sempre uma grande mulher”. Hoje, ao lado, ou à frente, de um grande homem há uma grande mulher. Para isso, seja real é preciso mais educação, menos machismo e regras afinadas com a Lei Maior.

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