domingo, 24 de novembro de 2024

A Justiça precisa cuidar dos golpistas - Elio Gaspari

O Globo

Todo golpe fracassado é ridículo e todo golpe vitorioso é heroico. O de Jair Bolsonaro fracassou. Passados dois anos, o Brasil livrou-se das turbulências militares chacoalhadas a partir do Palácio do Planalto. Isso não é pouca coisa.

A Polícia Federal divulgou uma representação de 221 páginas, prendeu quatro pessoas, inclusive um general da reserva, e indiciou 37 cidadãos. Bolsonaro encabeça a lista na qual estão quatro ex-ministros, três dos quais com altas patentes militares. A Justiça decidirá o que fazer com cada um deles. Sabendo-se como o Judiciário baixou o pano da Operação Lava-Jato, é melhor economizar expectativas.

Pode-se olhar de duas maneiras para o golpe de Bolsonaro. Primeiro, por que fracassou. Depois, como ele tentou ficar de pé. Fracassou porque pretendia cancelar o resultado das urnas e, até por isso, não teve o apoio de comandantes militares relevantes.

Na conta de um coronel palaciano, no dia 17 de dezembro de 2022, o placar no Alto Comando do Exército era o seguinte:

“Cinco (generais) não querem, três querem muito e os outros (sete), zona de conforto. É isso. Infelizmente.”

Quando militares se metem na política e vivandeiras civis se metem nos quartéis, brilham os generais falantes (quase sempre da reserva). Como os profissionais não falam, tornam-se invisíveis, mas decidem as paradas. O golpe de Bolsonaro tinha um núcleo golpista, essencialmente palaciano. Seus generais e coronéis comandavam os motoristas de seus carros oficiais. A eles juntaram-se milhares de vivandeiras acampadas diante de quartéis.

Em julho de 2022, quando Bolsonaro levantava o fantasma de uma possível fraude na eleição de outubro, o comandante do Exército, general Freire Gomes, disse, numa reunião, que não tinha notícias de irregularidades. Dois dias depois do segundo turno, ao ser consultado sobre a minuta de um golpe subsequente à decretação do estado de defesa, ele condenou a ideia.

Nas semanas seguintes, Bolsonaro acreditou que suas vivandeiras atropelariam os oficiais que pretendiam respeitar o resultado das urnas. Enganou-se.

No dia 6 de dezembro, o caminhoneiro Lucão, acampado na frente de um quartel, escreveu ao general Mario Fernandes:

“O povo aqui em São Paulo começou a desistir já, cara. Já tem barraca sendo desmontada. Né? As pessoas têm trabalho, têm convívio social, o pessoal não tá mais aguentando não, cara. 35 dias nas ruas. Eu mesmo tô desmotivado (...). Esses três últimos dias tomando chuva direto lá, cara, voltando pra casa, porra. (....) Sapato encharcado, roupa encharcada.”

O general Mario Fernandes foi preso na quarta-feira e precisa de bons advogados. Ele estava na reserva do Exército e na ativa como palaciano. Era o secretário-executivo da Secretaria-Geral da Presidência e foi um ativo articulador do golpe. Frequentava o acampamento de Brasília e, uma semana depois do segundo turno, imprimiu no palácio o “Plano Punhal Verde Amarelo”, um manual para o levante. Previa a possibilidade de atentados contra Lula e Geraldo Alckmin, seu vice. Isso e mais um ataque ao ministro do STF Alexandre de Moraes.

Todo golpe fracassado é ridículo

Cinco dias depois da impressão do “Plano Punhal Verde Amarelo”, o major Rafael Martins, que servia no Batalhão de Operações Especiais, trocou mensagens com o tenente-coronel Mauro Cid, então ajudante de ordens de Bolsonaro. Discutiram os recursos necessários para tocar o bonde e concluíram que seriam necessários R$ 100 mil. Não se sabe se algum dinheiro apareceu, nem de onde veio, mas no dia 7 de dezembro, o major comprou um iPhone 12, pagou R$ 2.500 (em espécie) e colocou o aparelho em nome da mulher. Era um modelo caro. Seria usado para iludir a vigilância.

Nesses dias, Lula e o ministro Alexandre de Morais eram campanados. No dia 9, uma equipe de seis militares começou a chegar a Brasília. Usavam codinomes e se comunicavam por celulares. Primeiro veio Áustria (major Rodrigo Azevedo, preso na semana passada). No noite de 12, a sede da Polícia Federal foi atacada. Visitando um acampamento, o presidente do PL, Valdemar Costa Neto, garantiu:

“O Bolsonaro não vai decepcionar ninguém.”

Às 20h do dia 15, o major Rafael, Austrália, Gana, Japão e Alemanha estavam a postos, no caminho de Alexandre de Moraes, para a Operação Copa 2022. Às 20h59m receberam ordens para abortar a ação. Como mostrou o repórter Ranier Bragon, não se sabe quem acionou a missão nem quem a abortou. Essa é uma das lacunas do relatório apresentado pela Polícia Federal.

É possível que as 800 páginas que acompanham os 37 indiciamentos esclareçam as dúvidas. Queriam envenenar Lula? Quem, como? As 221 páginas do relatório da Policia Federal mostram uma investigação minuciosa, mas à parte, a denúncia da intenção dos atentados e a profundidade do envolvimento do general da reserva Mario Fernandes, pouco acrescentam de substancial às conclusões da CPI Mista do Congresso e à parte já conhecida do acervo documental do ministro Alexandre de Moraes.

De prático, o “Plano Punhal Verde Amarelo” do general Mario Fernandes resultou na compra de um iPhone pelo major Rafael.

O golpe triunfou, veja como ficaria o Brasil

Os comandantes militares fecharam com a proposta de Bolsonaro, o golpe prevaleceu e a eleição foi anulada. Documentos encontrados no HD do general Mario Fernandes informam:

No dia 16 de dezembro de 2022 foi criado o Gabinete Institucional de Gestão da Crise. Funciona no segundo andar do Planalto. É chefiado pelo general Augusto Heleno e coordenado pelo general Braga Netto. Abaixo deles estão Mario Fernandes, mais dois generais e 13 coronéis. Paisanos, só o assessor Filipe Martins, o jurista do golpe, e dois advogados.

Entre as suas missões, o Gabinete de Gestão da Crise estabeleceu “um discurso único em todos os níveis nas atividades de comunicação social para evitar interpretações e ilações que desinformam a população.”

O gabinete teve sua ação subsidiada por um roteiro preparado há tempo e sempre atualizado pelo coronel Hélio Ferreira Lima (preso na semana passada). Abriu-se um inquérito para investigar fraudes ocorridas na eleição anulada. (Algum dia haverá outra.) O ministro Alexandre de Moraes e outros “elementos geradores de instabilidade no STF” foram “neutralizados”. Criou-se uma “força legalista” que expede “mandados de prisão contra envolvidos em indícios de irregularidades no processo eleitoral.” As prisões foram “amplamente divulgadas”.

Com suas quarteladas, desde 1831, o Brasil já viu de tudo, mas esse seria o único golpe destinado a manter no poder uma patota de oficiais palacianos.

2 comentários:

Mais um amador disse...

" Sabendo-se como o Judiciário baixou o pano da Operação Lava-Jato, é melhor economizar expectativas. "

Perfeito !

Excelente coluna.

ADEMAR AMANCIO disse...

Isso que dá idolatrar ídolo de pano,de barro,de lama,sei lá.