terça-feira, 17 de dezembro de 2024

O que levou à prisão do general - Míriam Leitão

O Globo

Há fatos novos que levaram à prisão de Braga Netto, segundo as investigações. Ele, ao entregar o dinheiro aos kids pretos, ficou na mesma posição dos executores

O que motivou a ação contra o general Walter Braga Netto foi o fato de que “ele seguia buscando informações sobre dados sigilosos para, de alguma forma, interferir no processo”. Foi isto o que me disseram fontes a par das investigações, quando questionei por que Braga Netto e por que agora. Há ainda outro fator que levou o ex-ministro da Defesa à peculiar situação de estar preso no mesmo Comando Militar do Leste que um dia comandou, na Vila Militar Marechal Deodoro, onde tantos presos políticos sofreram durante a ditadura. Trata-se do relato prestado por Mauro Cid, segundo o qual o general teria entregado R$ 100 mil de integrantes do agronegócio aos chamados "kids pretos".

A acusação o colocou “na mesma posição dos demais executores que estão presos há duas semanas”, me disse uma fonte. O relatório da PF fala ainda em necessidade de “garantia da ordem pública”. O raciocínio é que ele tem conexões, é influente, e poderia insistir em alguma ação antidemocrática. Quando a Polícia Federal foi executar a ordem de busca e apreensão contra o coronel Flávio Botelho Peregrino, principal assessor do general Braga Netto, encontrou em seu poder “dezenas de pen drives”. Estes dispositivos, além do conteúdo dos celulares, podem conter informações sobre os financiadores.

Neste enredo que temos vivido há um fato intrigante: o volume de provas que os acusados e os suspeitos produziram contra si mesmos. Por que eles guardaram tantas provas e documentos, alguns inclusive impressos? Talvez os golpistas tivessem a certeza da impunidade, se desse errado. E a esperança da glória, pelo reconhecimento histórico como protagonistas, se desse certo.

A impunidade acolheu todos os golpistas no Brasil. Ao longo do século XX, os militares assombraram a República com levantes, quarteladas, ameaças, chantagens, e um golpe que nos custou 21 anos de muito sofrimento. Ninguém foi punido. As raras prisões foram curtas e sem processos. Como explicou o professor Carlos Fico, o ineditismo agora é pela existência de processo legal conduzido pelo Poder Judiciário em fase de normalidade democrática.

O senador Hamilton Mourãoem entrevista a Victoria Abel neste jornal, chamou o que houve de “golpe tabajara”. Uma linha da defesa tem sido a de ridicularizar as descobertas para convencer as pessoas de que não aconteceu o que a Polícia Federal está provando que houve. Também pareceria sem sentido um general de divisão sair de Juiz de Fora com um regimento para derrubar o governo. Pois é. Foi assim que começou 1964.

Mourão, o senador, fez uma sucessão de perguntas na entrevista que concedeu ao GLOBO. “Como funcionaria um golpe? Você vai fazer o quê? Fechar o Congresso? Qual o objetivo do golpe? Impedir a posse?”. Todas essas perguntas já estão respondidas pela investigação. Não apenas fechar o Congresso, mas “neutralizar" o presidente e o vice- presidente eleitos, e pelo menos um ministro do Supremo. Os outros ministros seriam presos.

Em entrevista que Mourão concedeu em 2018 à equipe da GloboNews, perguntei a ele em que situação a democracia poderia ser sacrificada. Mourão respondeu “quando há anarquia, quando o país está em anarquia”. O caminho traçado pelos golpistas era exatamente produzir a anarquia para justificar a intervenção. Naquela entrevista, ele repetiu que seu herói é Brilhante Ustra. E quando eu lembrei que o coronel havia matado sob tortura dezenas de pessoas, ele me respondeu “heróis matam”. Para aplacar as dúvidas do senador, com tão nobres valores, recomenda-se a leitura de todas as milhares de páginas já tornadas públicas do processo.

No ano que vem, o Brasil completará 40 anos de democracia. Pela primeira vez, o país tem uma democracia de massas, já que os outros períodos foram de direito de voto restrito. É espantoso que estejamos vivendo essa história tão fora do tempo e lugar na terceira década do século XXI. A leitura atenta dos relatórios da Polícia Federal arrepia pela proximidade que estivemos de uma nova ruptura do Estado Democrático de Direito. A punição de todos os responsáveis é a única forma de garantir tanto a própria missão profissional das Forças Armadas, quanto a integridade da República democrática na qual escolhemos viver. Não será uma travessia fácil, mas subestimar os riscos ou cair de novo na tentação da impunidade são os erros que o Brasil não pode cometer.

 

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