Folha de S. Paulo
Nossa relação com o debate público
polarizado, hoje, é similar a um tribunal
Braga Netto, agora
preso preventivamente, era o cabeça do plano golpista. Bolsonaro participou
apenas da elaboração de um decreto de estado de sítio, dispositivo previsto na
Constituição. Foi dissuadido pelo general Freire Gomes. Todas os elementos mais
sórdidos do plano que hoje se descortina —com sequestro e assassinato— eram
obra de Braga Netto e outros militares extremistas. O golpe seria dado,
inclusive, no próprio Bolsonaro, posto que o comitê que assumiria o poder a
partir do uso do artigo 142 não o incluiria.
Foi Braga Netto que, segundo Mauro Cid, arranjou o dinheiro pagou os kids pretos. Era ele quem, por meio do general Mario Fernandes, mantinha contato com os acampamentos golpistas, dos quais saíram os atos violentos como a "noite do fogo" de 12 de dezembro e o atentado terrorista no aeroporto de Brasília.
A essa altura, você deve me considerar ou
muito burro ou muito desonesto. É uma reação normal. Saiba, então, que não
acredito na narrativa dos dois parágrafos acima. Estou apenas relatando a linha
de defesa (ou ao menos uma delas) adotada pelo advogado
de Bolsonaro em resposta ao inquérito que o indiciou.
Embora ela não convença, e até cause
indignação, seus pontos centrais não são simples de se refutar, justamente
porque exploram pontos fracos da acusação. De fato, ainda não há prova de que
Bolsonaro soubesse dos planos de sequestro e assassinato, das operações dos kids
pretos etc. É possível ligá-lo diretamente à minuta do decreto,
para a qual ele inclusive sugeriu edições; mas tê-lo discutido —coisa que ele
assumidamente fez— já configura crime? Isso não é claro.
É por esse caminho que a Justiça chega à
verdade. Em vez de pedir a uma autoridade técnica perfeitamente imparcial para
coletar provas e emitir uma conclusão, montam-se duas equipes antagonistas,
assumidamente parciais, para que sustentem diferentes narrativas com base nos
fatos conhecidos e busquem falhas na narrativa adversária. Podem inclusive
negar fatos alegados pelo lado contrário.
O relatório
final do inquérito da PF, com suas quase 900 páginas, também
constrói uma narrativa. Os documentos puros —textos impressos, gravações
telefônicas, prints de trocas de mensagens— são os elementos usados para tecer
uma história que, ao contrário da narrativa da defesa, coloca Bolsonaro no
centro da trama.
Chamar um conjunto de crenças de
"narrativa" não é desmerecê-lo. Nosso conhecimento não é um mero
empilhamento de fatos. Nós ligamos fatos pontuais em histórias maiores que dão
sentido à realidade.
Nossa relação com o debate público
polarizado, hoje, é similar a um tribunal: diferentes narrativas são
construídas a partir dos fatos (ou supostos fatos) e se digladiam. Cada um de
nós é um jurado no tribunal do debate público, chamados a dar vereditos diários
para um lado ou outro. Podemos também nos fazer de advogados e promotores junto
a nossos pares.
Nesse tribunal, de pouco vale nossa
indignação com a posição de um adversário se não conseguimos mostrar seu ponto
fraco. Em vez acusá-lo de burro ou desonesto, mais vale se interrogar: com base
no quê posso afirmar que minha narrativa é verdadeira e a de meu interlocutor é
falsa?
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