Folha de S. Paulo
Produto das telas e redes, portanto, de um
novo tipo de estupidez, Trump busca nobreza eleitoral na insanidade
O imperador Calígula dizia ser um deus e conversar com a lua. Sanguinário, devasso, aperfeiçoava métodos de tortura, exilava cidadãos. Encabeça a lista dos governantes absolutistas mais loucos do mundo, próximos às ideias monarquistas de Curtis Yarvin, pensador da extrema direita, consultor de Elon Musk para um terceiro partido. Seria apressado associá-los a Trump, embora a crueldade do régulo americano tenha afinidade com o rol histórico dos desatinados. Eleito, ele veste carapuça imaginária de imperador, com fúria caligulesca de deportações e sombrios rumores sexuais. Mas de olho além da Lua, em Marte.
Em princípio, são aspectos miúdos do trumpismo,
cujo eixo é a reafirmação do protecionismo econômico dos EUA por meio
de guerra comercial. Nisso, nenhuma loucura, e sim reflexo do medo da
desindustrialização, devida à realocação de fábricas para onde os salários se
rebaixam ao nível da desumanidade. Uma reação particular à nova ordem mundial,
que vitimiza a antiga classe trabalhadora branca do "cinturão da
ferrugem". A esta, junto a setores desclassificados, deveu-se a eleição de
Trump.
Em suma, foi o medo. Pode-se agir por medo ou
apesar dele. No último caso, enfrentam-se obstáculos, até mesmo a morte. É o
que se observa nos "tycoons", construtores de fortunas e impérios. E
disso sempre fez alarde o capitalismo. O que nunca se explicita é o temor
subjacente às conquistas. A paranoia como cimento social é motora de uma
ideologia isolacionista, expressa em modos de vida, literatura popular e cinema
de ação. Uma sociabilidade propícia a serial killers.
Esse é o substrato da aversão visceral ao
outro, o estrangeiro, foco da alma coletiva encarnada em Trump. Deportar
imigrantes é uma incitação ao exílio interior de cidadãos destinados à
"América Novamente Grande" (Maga), ou seja, brancos descendentes dos
primeiros colonos. O
uso de boné do Maga por um não-americano, um brasileiro, digamos, é um
marcador rebarbativo de ignorância política ou do transe atravessado pelos
excluídos da nova bonança, prometida, não pelo impossível retorno da indústria
manufatureira, e sim pela IA.
Mas o domínio da inteligência vive à sombra
da besteira. Anos atrás, Jean Baudrillard assinalava que "a tirania da IA
preside ao nascimento de uma besteira desconhecida até agora —a estupidez
artificial— espalhada por toda parte, nas telas e redes informáticas. Então a
besteira natural pode ganhar nobreza, como loucura" (em "Le Pacte de
Lucidité").
Produto dessas telas e redes, portanto, de um
novo tipo de estupidez, Trump busca nobreza eleitoral na insanidade. Seu
niilismo, avesso ao iluminismo das universidades, prospera na depressão moral e
cultural dos parceiros de crueldade: nacionalistas cristãos de direita, big
techs e até na subserviência da brasileira, a JBS, que doou US$ 5 milhões para
a sua posse.
Trump quer dinheiro. A aparente loucura está
na imprevisibilidade da sua gangorra entre mundo histórico e realidade
paralela. Até agora não emulou Calígula, que fez do cavalo Incitatus um senador
romano. Uma equinocultura contagiante: segundo um senador brasileiro, Trump
poderá retaliar com bomba atômica se for desobedecido. Mas o Chucky-Laranja,
invenção telemórfica, prefere se afirmar como reencenador oportunista de
loucuras do passado.
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