Jeanne Moreau: Atenta aos novos tempos
Protagonista do longa ‘Uma dama em Paris’, em pré-estreia no Rio, a atriz diz não ligar para sua condição de mito do cinema e declara apoio a jovens brasileiros
Rodrigo Fonseca
Eternizada como um ícone da revolução sexual graças a filmes cultuados como “Os amantes” (1958) e “Jules e Jim — Uma mulher para dois” (1962), a diva francesa Jeanne Moreau anda atenta às recentes manifestações no Brasil, país onde fez grandes amigos nos anos 1970. Aqui ela filmou “Joanna Francesa” (1973), de Cacá Diegues, em Alagoas. Voltou em 2009, para o Festival do Rio. Agora, ela poderá ser vista novamente nas telas nacionais à frente da produção “Uma dama em Paris” (“Une estonienne à Paris”), de Ilmar Raag, em pré-estreia hoje (e durante toda a semana) no Estação Rio 3, às 17h50m. Mas, saudades à parte, a atriz de 85 anos encara as passeatas em território brasileiro como o indício de uma corrente de protestos políticos que, nos próximos meses, pode se espalhar em escala global. Essa hipótese ela baseou em suas memórias de 1968, quando viu o mundo inteiro comungar de um sentimento revolucionário iniciado a partir da inquietação de jovens em Paris que, num piscar de olhos, varreu o mundo. Nesta entrevista por telefone, ela dá seu apoio à juventude nas ruas, avalia o cinema francês atual e filosofa sobre a morte.
Nos anos 1960, a senhora simbolizou a liberdade, sexual e afetiva, para a juventude que foi às ruas protestar. Como a senhora vê a juventude de hoje, em especial os jovens brasileiros, unidos em protestos por todo o país?
Se eu não tivesse a idade que tenho e estivesse aí, estaria nas passeatas ao lado deles. O que está acontecendo agora no Brasil, país tão querido para mim, é só um começo de algo que vai se espalhar pelo mundo como uma explosão. Sabe por que acredito nisso? É porque quem manda na política internacional hoje são os bancos. No momento em que o mundo vive sob um “regime bancário” de governo, uma crise econômica, como a vivida hoje na Europa, é uma fonte de desequilíbrio político. Como acreditar em harmonia se os bancos deixam a economia de um país falir? Os jovens foram às ruas porque as pessoas que estão no poder agem em prol do dinheiro e não do bem-estar alheio.
O que houve de diferente nos protestos de 1968?
Muitas coisas, a começar pela afirmação da liberdade sexual. E isso se reflete no cinema. Nos anos 1960, você jamais veria um filme sobre a paixão entre duas mulheres como “La vie d’Adèle — Chapitre 1 & 2” (longa que rendeu a Palma de Ouro ao franco-tunisiano Abdellatif Kechiche no Festival de Cannes, em maio). É um filme maravilhoso, mas que reflete um novo tempo, no qual as relações entre homens e mulheres parecem desinteressantes. Em 1968, o cinema ainda falava da mulher como um objeto do desejo masculino.
A senhora tem medo do que a França possa sofrer se começar a haver protestos por aí?
Eu não tenho medo de nada. Não tenho mais idade para isso.
Nem da morte? Não é estranho para alguém que vive há seis décadas como um mito pensar em morrer?
Não importa o que eu seja no imaginário alheio: mito, diva. Eu sou apenas mulher. E como qualquer mulher, aliás, como qualquer ser humano, vou morrer um dia. Estou me preparando para a chegada da morte. Quero apenas saber que deixei tudo em ordem, na minha casa, na minha vida e mesmo no cinema, antes de partir.
O que significa “deixar tudo em ordem no cinema” para alguém que filmou com diretores como François Truffaut, Louis Malle, Orson Welles? O que a senhora aprendeu com eles?
A cada vez que faço um filme, aprendo muito mais sobre mim do que sobre cinema, ou sobre o mundo. Atuar para um filme é um ato de descobrir mais sobre sua própria natureza projetando-a em um personagem. Eu sou um mistério para mim. Eu filmo para ter uma ideia mais precisa do que sou. Sobre “deixar tudo em ordem”, no cinema, é ter a certeza de que trabalhei com diretores que valorizaram o papel da mulher na sociedade.
Esse é o caso de “Uma dama em Paris”, em que a senhora vive uma imigrante da Estônia às voltas com um amor do passado?
“Uma dama em Paris” são as memórias de uma mulher que deixou a Estônia na pobreza e sobreviveu na França com dificuldade, com a ajuda dos homens que conheceu e daquele por quem se apaixonou. Não penso que seja um filme sobre solidão, como algumas pessoas dizem, e sim um filme sobre a realidade de alguém que deu adeus ao sexo, mas não ao amor.
Há dois filmes seus ainda inéditos para estrear no Brasil: “La Duchesse de Varsovie”, de Joseph Morder, e “O Gebo e a sombra”, de Manoel de Oliveira. A senhora mantém uma produtividade invejável, atuando em uma média de dois longas por ano. Como avalia o cinema feito hoje na França?
Há muita coisa sendo produzida e você se depara como filmes incríveis como “La vie d’Adèle”. Mas o que lamento no cinema contemporâneo, de modo geral, é que as relações sexuais no cinema vêm se vulgarizando num ponto que beira a estética pornô. É assim em todo canto. Quando comecei, os diretores tratavam as mulheres nas telas com mais poesia, mesmo pelo viés sexual. Essa história de me enxergarem como mito só me interessa num ponto: saber que apareci em um momento no qual havia diretores interessados em falar da força da mulher. E eu servi a esses cineastas da forma que pude. Hoje, o cinema se “masculiniza” de uma forma estranha. Você vê mais filmes sobre homens, sobre cobiça, sobre riqueza. Onde fica a mulher nisso?
Fonte: Segundo Caderno /O Globo
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