• Construímos um conjunto de disfarces formais e meramente rituais para enfrentar o desconforto da intolerância e das injustiças
O Estado de S. Paulo / Aliás
Nestes dias tumultuados de incerteza política que estamos vivendo, há outras incertezas de menor visibilidade, que vêm de longe, e fazem parte de um sistema articulado de crise social e de decadência de que as anomalias de agora são apenas uma parte do problema. Os sociólogos definem situações desse tipo como estados de anomia, caracterizados pela perda da eficácia dos valores e das regras sociais que tornam a vida em sociedade possível. O Brasil, aparentemente, está ultrapassando o limite dessa linha da segurança coletiva. Alguns episódios recentes são indicativos do que está acontecendo. O cardeal-arcebispo de São Paulo, na Quarta-feira de Trevas, durante a missa na catedral, foi atacado fisicamente e derrubado por uma mulher que o acusava e à Igreja de serem comunistas. Queria “sua Igreja” de volta.
Os circunstantes procuraram atenuar a agressão argumentando que a agressora dava sinais de perturbação. Mas não se deve deixar de considerar que o ato, nas palavras e na reivindicação, revestiu-se do formato de um ato de intolerância política, o formato que a crise vem assumindo. As formas sociais convencionais apossam-se até mesmo dos atos de suposta insanidade e agregam-se àquilo que parece normal e compreensível.
Em dias seguintes, um homem invadiu o Fórum do bairro do Butantã, onde estava sendo processado, com base na Lei Maria da Penha, por ter agredido a esposa. Foi diretamente à sala da juíza do feito atacou-a e agarrou-a, despejou combustível no corpo de sua vítima e ameaçou-a de queimá-la viva. Sentia-se injustiçado pelo enquadramento numa lei que pune pelo tratamento violento de esposa, lei que revoga valores e concepções iníquas que nos vem das Ordenações Filipinas.
Definido como perturbado mental, sua ação, no entanto, assumiu o formato de uma ação política na medida em que foi insurgência contra transformações sociais que atualizaram o direito na atualização do direito da mulher.
Alunos do curso de Engenharia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre, a que se juntou um da Pontifícia Universidade Católica, segundo as notícias, na noite do último dia 19, diante da residência estudantil, agrediram a socos e pontapés um estudante do Curso de Veterinária, Nerlei Fidelis, de 31 anos, que estava acompanhado de um sobrinho. Da nação Caingangue, ele é um dos 76 alunos indígenas que ingressaram na Universidade através do vestibular especial ali implantado. Desses, 62 são caingangue, 12 são guarani e uma é fulni-ô, de Pernambuco. Os agressores incriminavam em Nerlei o fato de ser índio e deram início à agressão com a pergunta “o que esses índios estão fazendo aí?” Os preconceitos de vários tipos, no Brasil, raciais, sociais, religiosos, de gênero e outros estão fundados no pressuposto de que cada um é livre e tem direitos nos limites do espaço a ele ou a ela destinado. Não se trata, portanto, apenas de racismo, palavra que esconde e escamoteia um conjunto grande de preconceitos. Trata-se de uma concepção remotamente fundada no preconceito de casta ou no preconceito estamental, próprio de uma sociedade baseada no pressuposto de que as pessoas nascem e morrem socialmente desiguais. No limite, são pessoas tratadas como intocáveis e poluentes, daí incomodarem quanto fora de “seu lugar”.
Não é de outra natureza uma ocorrência destes dias, também em Porto Alegre. Uma vereadora do PT recebeu mensagem de uma médica dizendo-lhe que, por ser a mãe da criança militante do Partido, “eu estou sem a mínima condição de ser pediatra do teu filho”. Essa decisão foi apoiada pelo Sindicato dos Médicos, que reconheceu o direito da pediatra de tomá-la. Sem entrar no mérito da questão, a ocorrência documenta de forma incômoda o quanto as mais diferentes relações sociais estão atravessadas pela tensão destrutiva que tomou conta do País, fazendo com que a crise política, numa ponta, alcance uma criança inocente na outra.
O Brasil sempre foi um país intolerante e, de vários modos, autoritário. Construímos um conjunto de disfarces formais e meramente rituais para enfrentar o desconforto da intolerância e das injustiças que dela decorrem. Mas, nos momentos de crise e de tensão sociais, os disfarces derretem-se sob o calor da hora e ficamos nus diante do espelho. Nunca conseguimos construir uma verdadeira identidade nacional. No papel, sim, mas, na vida, não. Com facilidade, tendemos ao corporativismo e são muitos os que se fecham numa identidade restrita, sobreposta ao que deveria ser a identidade de todos, a da Pátria.
A crise política e econômica tem acentuado a gravidade da intolerância e das discriminações. Nas sessões da comissão do impeachment, a manifesta incapacidade de ouvir o outro mostra-nos uma Câmara dos Deputados que vai decidir o nosso destino sem ter condições de decidir o seu próprio porque, intolerante, não se mostra capaz de ouvir-se. Nas ruas, o quadro não é diferente. Nem um ministro do Supremo Tribunal Federal escapou da intolerância popular.
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José de Souza Martins é sociólogo, membro da Academia Paulista de Letras. Escreveu entre outros Uma Política do Brasil Lúmpen e místico (Contexto )
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