- Valor Econômico
Eleito presidente, Lula era chamado de chefe por quem, na delação, se apresentou como comandante
Emílio disse que falta de investimentos do governo FHC lhe abriu menos oportunidades de negócios
SÃO PAULO - Foi a participação nos lucros e resultados, na visão do patriarca da Odebrecht, que salvou o Estado brasileiro de um assalto ainda maior. A afirmação passou despercebida ao longo dos dois dias que duraram o depoimento de Emílio Odebrecht na Procuradoria-Geral da República, às vésperas do Natal do ano passado. É nela, no entanto, que parece estar o sumo da delação que desmoralizou a política brasileira e precipitou o país para um poço sem fundo. Na sua descrição, repetida para as transações nos últimos três governos, como os executivos da Odebrecht tinham PLR, sempre houve interesse em minimizar as doações para melhorar os resultados, enquanto o outro lado, o dos políticos, queria maximizá-las.
O PLR ainda não havia sido adotado pela indústria nacional nem pelo mercado financeiro internacional na versão ilimitada que o mergulhou na bancarrota de 2008, quando Emílio Odebrecht descobriu a pechincha que o capitalismo brasileiro lhe oferecia. O nome da barganha era Luiz Inácio Lula da Silva.
O sindicalista lhe fora apresentado por Mário Covas, parlamentar cassado do MDB paulista. Emílio gastou nove horas, durante almoço na casa de Covas, para melhor conhecê-lo. O investimento parecia promissor. O empresário se valeria da emergente liderança sindical que acabaria por fundar o PT para negociar com os movimentos grevistas do polo de Camaçari (BA), que se fortaleciam com o fim da ditadura. A definição que Golbery do Couto e Silva dera de Lula - "um 'bon vivant', que gosta de uma cachacinha" - lhe mostrou a janela de oportunidades que se abria para seus negócios.
Trinta anos depois, relataria aos procuradores em Brasília as providências tomadas para que o sítio de Atibaia ficasse pronto para receber o velho sindicalista. Depois de valiosos serviços prestados àquela que, sob seu governo, se transformaria na segunda maior empresa privada do país, Lula continuaria uma pechincha. A reforma custaria R$ 700 mil, mas Emilio não esperava que o sítio abrigasse um aposentado.
O empresário deixou claro que não era de amizade a relação mantida com Lula. Só o visitara em casa uma vez, ainda como sindicalista. Em seus dias de presidente, todos os encontros se davam no Palácio do Planalto ou em inaugurações. Livrava-se dos convites para o aniversário do presidente enviando um de seus executivos - "Era uma forma de me preservar sem parecer que eu estivesse me afastando."
Escolheu o último dia do seu segundo mandato para levantar o segredo que havia sido pedido por dona Marisa, durante festa de aniversário, ao executivo enviado, Alexandrino Alencar. Disse que Lula não esboçara qualquer reação ao ouvir que teria uma surpresa com a reforma do sítio, pedido de dona Marisa.
Ao revelar aos procuradores o diálogo, ofereceu aquilo que o Ministério Público buscava, mas, naquele momento, o comentário, feito às vésperas da posse de Dilma Rousseff, parecia ter outra motivação. Serviria para lembrar ao quase ex-presidente que o empresário continuaria a confiar nele para dobrar aquela que, ao longo de seus oito anos no poder, havia se mostrado o mais resistente de seus colaboradores aos negócios da empresa que, reiteradamente durante o depoimento, chamou de "organização".
Eleito presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva era chamado de chefe por Emílio. Nos depoimentos, no entanto, o presidente do Conselho de Administração da Odebrecht não deixa dúvidas sobre quem mandava. Falou na tentativa de salvar a empresa fundada pelo pai e voltar a contratar com o Estado. O que se viu, no entanto, foi um empresário que, aos 72 anos, não parecia reconhecer o cultivo de vícios privados que se apossaram do Estado e afundaram o país.
Ao contrário da geração de políticos que agora ameaça ser dizimada pela Lava-Jato, os Odebrecht sobreviveram a todos os regimes graças à capacidade de perceber de onde sopravam os ventos da mudança. Na mesma época em que Covas fez a mediação para o primeiro encontro com Lula, um outro emedebista, este baiano, Valdir Pires, o apresentou a Fernando Henrique Cardoso.
O intelectual paulista dava seus primeiros passos na política que o projetariam diretamente para o Senado, graças à suplência de Franco Montoro, eleito ao governo do Estado. Emílio ajudava a desfazer a impressão, entre empresários, de que se tratava de uma liderança esquerdista. Em troca, FHC o ajudaria a convencer os industriais paulistas a absorver uma parte do gás que a Odebrecht queria trazer, com a ajuda do governo, é claro, da Argélia, da Argentina e da Bolívia.
Eleito presidente, Fernando Henrique aprovaria no Congresso a Lei das Concessões, para a qual Emílio disse ter dado decisiva contribuição - "Contribuímos com a experiência que tínhamos no hemisfério norte. Ele absorveu e incorporou". Relatou ainda ter contribuído para a quebra dos monopólios no governo FHC, e não apenas com ideias. Na das telecomunicações, por exemplo, chegou a montar um consórcio para disputar licitações. Explicou aos procuradores suas motivações: "Procurávamos contribuir com o que acreditávamos".
Emílio revelou grande identidade com o ex-presidente ("Assim como Lula, ele sempre foi um entusiasta"), mas já não disse o mesmo de seu governo. O advogado lhe lembrou da demanda de ilicitudes da procuradoria. O empresário tinha pouco a acrescentar além da versão do PLR com o qual irrigou o caixa dois nas últimas três décadas. Disse que Fernando Henrique tinha um ministro da Fazenda [Pedro Malan] "muito muquirana". E que, por isso, seu relato seria menos recheado do que aquele que fizera de Lula: "Foi um presidente que, na realidade, não fez investimentos".
O Emílio que emerge dos vídeos é menos doutrinado pelo discurso da advocacia da delação que o filho Marcelo, preso em Curitiba há quase dois anos. A despeito de gastar milhões com escritórios de advocacia, fez-se acompanhar por um advogado amigo de infância de seus filhos, a quem procurava confortar quando o percebia ansioso com os rumos de sua estudada espontaneidade. O empresário parecia confiar que, a partir daquela delação, a bola voltaria à política, jogo de seu domínio.
Se Fernando Henrique o podou pela mão de vaca na gestão orçamentária, Dilma Rousseff o fez pela desconfiança. Emilio Odebrecht teve uma prévia do que seria o governo Dilma Rousseff com a negociação do leilão do rio Madeira - "Todo mundo facilitava e ela só fazia dificultar." Tudo, para o empresário, não passava de pura implicância da então ministra da Casa Civil. Pela primeira vez desde que começara a frequentar o Palácio do Planalto na companhia de seu pai, Emílio estranharia a animosidade do titular.
Ao longo do governo Lula, não tivera dificuldades em partilhar com o ex-presidente seus projetos para o país. Desde os anos 1980, reconhecera a intuição, "a melhor que já vi, quase feminina, pega as coisas rapidamente, um animal", e identificara como poderia tentar moldá-la: "Faltava-lhe a visão macro, com a qual procurei colaborar com a visão da engenharia, que nos dá a possibilidade de perceber o âmago de cada estado."
O maior empreiteiro do país disse aos procuradores comungar inteiramente com a visão de país da maior liderança sindical da história brasileira: "Ele gosta de ver a população carente ganhar, sem prejuízo de quem quer também possa ganhar. Não tem isso de tirar de um para dar para outro. É a minha visão também". Como se viu no conjunto da obra das delações da empresa, a Odebrecht financiou a conversão da base parlamentar de Lula à redenção dos desvalidos ao mesmo tempo em que se valia do Estado para ampliar sua participação na infraestrutura nacional e estrangeira.
Essa identidade foi posta à prova no primeiro governo Lula quando a Petrobras demonstrou interesse em adquirir a Petroquímica Ipiranga, em detrimento do aumento de sua participação na Braskem, empresa do grupo Odebrecht. Emílio chamou a transação de "estatização" e foi para cima de Lula: "Chefe, isso aí é fundamental". Já tinha avisado aos seus executivos que se a operação da Ipiranga se concretizasse o grupo não daria mais um tostão para o PT, ainda que ele pudesse continuar a colaborar como pessoa física para Lula. O então presidente lhe teria dito para não se preocupar: "Você me conhece, não sou estatizante". De fato, Lula cumpriu a promessa e escreveu um capítulo na história da privatização do Estado. Sob seu governo e com a ajuda da Petrobras e do Congresso Nacional, que aprovou incentivos monopolistas, a Braskem passaria a ter 70% do mercado de prolipropileno.
A identidade com Lula o estimulou a ir adiante. Percebera que teria que avançar sobre a Amazônia para ampliar o potencial hidrelétrico do país. Antecipando-se às celeumas ambientais, a empresa passou cinco anos investindo em pesquisas e desenvolvimento de equipamentos que a permitissem explorar a força da correnteza da superfície, o que pouparia a obra de grandes e profundos lagos.
Associou-se a Furnas e a empresas estrangeiras para fazer esses investimentos - "Queríamos ficar mais competitivos do ponto de vista técnico e ambiental." Quando a modelagem da licitação começou a ser definida, a Odebrecht estrilou. Considerou-se nivelada, em pé de igualdade, com outras concorrentes - "Estávamos construindo uma coisa diferenciada para o país e para a engenharia brasileira e, apesar de todos os percalços que vínhamos enfrentando e da nossa associação com as principais empresas de equipamentos do mundo, ela [Dilma] queria que tudo fosse esquecido e entregue para qualquer outro utilizar como bem quisesse."
A então ministra, disse Emílio, implicava com as prerrogativas advogadas pela Odebrecht por puro despeito, já que se julgava mais capacitada do ponto de vista técnico e não admitia que a empresa pudesse trazer uma inovação que não fosse do seu conhecimento. O procurador não pareceu satisfeito e lhe perguntou quanto investira nos estudos. Emílio respondeu de bate pronto ("de R$ 150 a R$ 200 milhões"), mas buscou a ajuda do advogado quando indagado quem custeara o investimento.
Da explicação - as empreiteiras envolvidas racharam os custos, mas seriam ressarcidas sob quaisquer resultados da licitação - ficaria claro que as prerrogativas advogadas pela empresa não esbarravam apenas numa ministra invejosa. Como se persistissem dúvidas sobre a aula de capitalismo sem riscos que seu cliente acabara de dar, um dos advogados completou: "É o procedimento de praxe nesse tipo de contrato".
Ao final do segundo mandato de Lula, Emílio passara o comando do grupo para Marcelo, que assumiu as tratativas com Dilma, de quem o patriarca nunca escondeu a antipatia. Quando a relação com a sucessora do lulismo empacava, pedia ao pai para acionar seu sindicalista de estimação. Ficou claro para todos que Lula já não tinha a mesma ascendência sobre o governo, mas o grupo continuaria a derrotar a presidente que ajudar a eleger.
A Lava-Jato já estava na praça quando a Odebrecht começou a mobilização pela Medida Provisória 703, conhecida como a MP da leniência, e por meio da qual a empresa pretendia pagar multas e voltar a contratar com o Estado - "A partir do momento em que Marcelo foi preso, os problemas financeiros foram se agravando e concluímos que precisávamos de um acordo de leniência. Naquele previsto em lei não havia garantias suficientes."
Emílio começou a arregimentar sindicatos, lideranças partidárias e entidades de classe para mostrar que se tratava de uma "aliança contra o desemprego". Emilio procurou Jaques Wagner, o ex-sindicalista de Camaçari que assumira a Casa Civil, e mimetizou o velho aliado que, àquela altura, já estava sob a mira dos investigadores: "Atuamos para que aqueles que tivessem interesses coincidentes pudessem atuar conjuntamente."
Na negociação, a Odebrecht sinalizava que uma leniência favorável poderia evitar a delação. O acordo interessava ao governo, mas Dilma ainda resistia - "Buscamos apoio tanto do capital quanto do trabalho. Aumentamos a pressão para dar suporte à ação do governo. É assim que se faz diante de um governo fraco", disse, em tom pedagógico, para os procuradores.
Venceu. A MP foi editada por Dilma em maio de 2015, mas a reação foi grande e o texto acabou não sendo convertido em lei. Emílio disse que foi o fracasso daquela mobilização, aliado à angústia dos familiares dos executivos envolvidos, que os empurrou a fechar o acordo de delação.
A fala simpática, humilde até, do empresário, ao falar de seus mandatos à frente do país, teve seu momento de maior tensão quando o procurador se irritou com a naturalidade com que o delator falava das práticas corruptoras da Odebrecht. Emílio tentou argumentar que havia jogado conforme as regras, sem benefício para seus negócios. O procurador reagiu com uma conclusão que, àquela altura, definitivamente, não soaria como um juízo precipitado: "Ah, teve sim senhor".
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