- Folha de S. Paulo
Em um país com mais conflitos de religião, presidente leva assunto para o Planalto
A União, os estados, o Distrito Federal e os municípios não podem “estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança”, diz o artigo 19 da Constituição.
No seu pronunciamento de Natal, em cadeia de rádio e televisão, Jair Bolsonaro (sem partido) disse que acredita em Deus, afirmação em si inócua. Discursou ao lado da mulher, que usava uma camiseta com a inscrição “Jesus”. Michelle Bolsonaro não exerce função pública remunerada, mas preside o Conselho do Programa Nacional de Incentivo ao Voluntariado, o “Pátria Voluntária”, criado por decreto presidencial em julho deste ano e vinculado ao Ministério da Cidadania.
A Carta de 1988 não trata da relação da pessoa do presidente com religiões, nem está explícito se ou quais atos do presidente podem implicar “relações de dependência ou aliança” da União com cultos religiosos e igrejas.
É um problema jurídico difícil resolver se Bolsonaro ou tantos outros chefes e integrantes de Poderes atravessam fronteiras legais nesse assunto. Mas é fácil perceber que o presidente tornou essa divisa ainda mais nebulosa e levou a nova questão religiosa do Brasil a um patamar mais alto.
Uma semana antes do pronunciamento de Natal, Bolsonaro participara de um “Culto de Ação de Graças”, como dizia a agenda presidencial, no Palácio do Planalto. Estariam lá cerca de 600 evangélicos, no dizer de um pastor presente.
“Entendo também que, pelas mãos de vocês, hoje sou o chefe do Executivo” e “É motivo de honra e de orgulho e de satisfação vê-los publicamente aceitando Jesus nesta casa”, discursou então Bolsonaro, entre orações.
“Nesta casa que estava carente da sua [de Deus] palavra. O Brasil mudou”, disse ainda o presidente. No pronunciamento natalino: “O governo mudou. Hoje, temos um presidente que valoriza a família, respeita a vontade do seu povo, honra seus militares e acredita em Deus”.
Nos quatro discursos em cadeia de rádio e TV anteriores, Bolsonaro citara Deus uma vez, em um boa noite. Ao longo do ano e em momentos de crise, fez questão de demonstrar mais proximidade política e religiosa com evangélicos, como agora, em que seu filho Flávio é acusado de crimes graves.
Depois de 1964, a presença da religião nos assuntos políticos foi perdendo força, em parte devido ao declínio da influência política, social e religiosa da Igreja Católica. A tendência se reverteu com a ascensão geral dos evangélicos, em números de fiéis e na política partidária (a Frente Parlamentar Evangélica foi criada em 2003).
Passamos a ter notícias de conflitos públicos entre parte dos evangélicos e católicos (“chutou a santa”) e perseguição renovada dos crentes do candomblé e da umbanda. Até atentados contra humoristas temos. Blasfêmia e horror assustadores, faz mais de década se ouve falar de “traficantes evangélicos”.
Passou a haver uma nova questão religiosa no Brasil, muito além da disputa de fiéis. Envolve partidos, interesse econômico maior, conflito de mídia e, agora, embates pelo controle político da educação e da cultura.
De um modo ou de outro, de maneira inadvertida, demagógica ou manipuladora, levar tal conflito para o centro da vida partidária e para os Poderes é sujeitar o país ao risco de mais um desastre, o do conflito político-religioso, de história e presente funestos e amargamente conhecidos.
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