- O Globo
Projeto que permite exploração de terras indígenas pode ser o começo de uma nova onda de violência física e cultural contra esses povos
No mesmo dia em que anunciou o projeto de lei prevendo mineração, exploração de petróleo e hidrelétricas em terras indígenas, o presidente Bolsonaro nomeou um evangelizador para a área mais sensível da Funai: a dos índios isolados. Em seguida, disse que se um dia puder ele confinará os ambientalistas na Amazônia. Em várias ocasiões Bolsonaro já demonstrou preconceito em relação aos índios, ou visão ultrapassada sobre o assunto. É por isso que a ideia assusta ainda mais. A Constituição prevê atividade econômica em terra indígena, dependendo apenas de regulamentação. O projeto, portanto, poderia até ser considerado se não fosse o presidente quem ele é, se não tivesse as declaradas intenções que tem.
O projeto vem após uma série de ataques à Funai feitos sob o olhar condescendente do ministro da Justiça, Sergio Moro. Não se conhece uma palavra de Moro contra os excessos e abusos cometidos contra a Funai, o aparelhamento político, a ocupação de cargos por pessoas sem a qualificação técnica, a escolha de coordenadores estranhos à área. A tentativa é de fazer da Funai uma instituição oca. Se ela ainda resiste é pelos seus servidores de carreira.
A escolha de Ricardo Lopes Dias para coordenador de índios isolados é um perigo não por ser pastor. O temor é que ele ponha em prática a convicção de que os índios precisam ser convertidos por missionários. Isso é a morte cultural. Os isolados são os mais frágeis sob todos os pontos de vista e há uma política consagrada de sequer forçar contato. A nomeação veio após a mudança de critérios para ocupar o cargo, em decisão do presidente da Funai, Marcelo Xavier. Antes, o cargo era exclusivo de servidores públicos efetivos. No dia 30 o critério foi alterado para que pudesse haver nomeação política.
Bolsonaro não tem o poder de confinar ninguém, mas seu pensamento antidemocrático é revelado na palavra que usou para definir o que quer fazer com pessoas que pensam diferente dele. Ele trata como natural uma atitude totalitária. Há uma fadiga no país em reagir aos absurdos diários que o presidente expõe em suas falas. E muita gente, com razão, quer simplesmente ignorar as “bolsonarices”. Seria um alívio. O problema é que ele, por ser presidente, tem visibilidade ampliada. Esses valores deletérios estão sendo apresentados diariamente como sendo naturais. Há uma geração de brasileiros sendo formada diante da exposição de que o presidente acha normal confinar pessoas porque pensam de forma diferente da do governo, definir indígenas como sub-humanos, afirmar que portadores de HIV custam caro ao país.
Essas foram apenas as últimas agressões verbais aos direitos humanos. Neste contexto é que foi apresentado o projeto de exploração de terra indígena. São terras públicas, da União, e serão ocupadas por grupos privados. Os indígenas serão ouvidos mas sem poder de veto, o que transforma o ato de ouvir como mera formalidade. O que o presidente está propondo é a morte cultural e étnica. Quer que eles sejam “como nós”. Como se os 300 povos não estivessem resistindo há 500 anos para manter suas culturas, seus idiomas, seu modo de viver. Se quisessem ter a vida de não indígenas já teriam feito essa escolha. Esse projeto pode ser o começo de uma nova onda de violência física e cultural contra os índios.
Tudo isso bate na economia, claro. No meio empresarial é possível ouvir empresários reclamando da estratégia do presidente Jair Bolsonaro de “governar por atrito”, na expressão de um deles que dirige uma grande associação. Se por um lado há os que apoiam incondicionalmente o presidente, por outro, há os que lamentam e se sentem inseguros com as crises constantes que não saem da primeira página dos jornais: “Passamos por uma forte recessão e estamos há três anos sem crescer muito. Este é o momento em que todos deveriam estar remando na mesma direção. Mas temos um presidente que estimula a divisão. Tem o empresário que não liga, mas tem o empresário que fica incomodado e inseguro. E aí continuamos nesse clima de morosidade, que não engrena nunca”, desabafou.
A economia nem é o maior problema. O perigo é o que o presidente pretende com esse projeto de permitir atividades econômicas nas terras indígenas, que hoje são unidades de conservação.
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