Radicalização enfraquece a democracia americana – Editorial | Valor Econômico
A negação do impedimento deu a Trump um perdão antecipado para novas burlas à Constituição
O presidente Donald Trump livrou-se do processo de impeachment com o apoio fiel do Partido Republicano, que detém maioria no Senado, que o julgava. Como o afastamento do homem mais poderoso do mundo é acima de tudo um julgamento político, Trump escapou deste destino com facilidade - e é isso que afeta perigosamente os pilares do sistema democrático americano.
Quando Trump venceu as eleições em 2016 no colégio eleitoral (perdeu por mais de 3 milhões de votos para a democrata Hillary Clinton nas urnas), com um discurso populista e belicoso, surgiu a dúvida se o sistema de pesos e contrapesos da democracia americana suportaria previsíveis e enormes pressões contrárias. A Câmara dos Deputados, sob maioria democrata, impediu desmandos de Trump e a Suprema Corte alguns outros - como o infame muro na fronteira mexicana e a proibição do ingresso nos EUA de cidadãos de uma lista de países muçulmanos. Mas a negação do impedimento, dadas as circunstâncias do processo e os fatos apresentados, deram a Trump um perdão antecipado para novas burlas à Constituição.
O tradicional e longevo mecanismo para retirar um escroque da Presidência falhou diante da radicalização dos dois partidos no Congresso. Os republicanos já vinham em uma escalada direitista, ao estabelecerem oposição uniforme e sistemática a todos os projetos do governo democrata de Barack Obama em seus dois mandatos. A ala mais conservadora deu o tom das teses da legenda, com o Tea Party à frente da catequização. Criou-se espaço para um bufão ambicioso e sem escrúpulos, como Donald Trump.
Trump não era republicano e tomou de assalto o partido com bravatas, insultos e apoio a algumas das bandeiras mais reacionárias do partido. Enfrentou as primárias achincalhando todos os candidatos da legenda, conservadores ou moderados. Ganhou a convenção e, depois, as eleições presidenciais.
Mas já nessa vitória, Trump revelou que usaria qualquer instrumento para chegar ao poder e nele se manter. Não há dúvidas, pela investigação conduzida pelo procurador especial, Robert Mueller, que vários membros da campanha de Trump tinham contato com agentes da Rússia para enlamear a então candidata Hillary Clinton. Alguns deles foram presos, como o escroque Paul Manafort. Em um ato inédito e inacreditável na história do país, Trump usou os passados arquirrivais dos EUA como aliados contra um político americano em uma disputa eleitoral.
Aproximando-se outra eleição, Trump fez algo parecido, só que desta vez falando em nome do Estado americano. Ele segurou uma ajuda à Ucrânia, exigindo que o presidente Volodymyr Zelenski aceitasse investigar o filho do democrata Joe Biden, Hunter, membro do Conselho de Administração da Burisma, maior empresa de gás do país. O objetivo era incriminar Hunter e Joe Biden, que, como vice-presidente de Obama, teria usado sua influência para obter negócios para o filho. Quando a extorsão de Trump ocorreu, em meados do ano, Biden era o candidato democrata mais forte para enfrentar Trump e pesquisas apontaram que ele o venceria. Trump armava nova fraude eleitoral.
Trump instruiu a cúpula do governo a não colaborar com as investigações e não fornecer documentos. Os principais envolvidos que depuseram no Congresso disseram que ele fizera exatamente aquilo de que era acusado. No Senado, quando os democratas propuseram convocar mais testemunhas, como o direitista John Bolton, ex-conselheiro de Segurança Nacional, os republicanos rejeitaram o pedido. Havia indícios de que Bolton incriminaria o presidente. Os republicanos agiram como um só homem, indicando que o ato vil de Trump não era motivo para mandá-lo de volta para casa.
O presidente, se eleito, deve repetir a dose em novas tentativas de desestabilizar o sistema em proveito próprio. Enquanto os democratas escolhem nas primárias seu candidato, Trump viu sua popularidade melhorar na última semana - 49% o apoiam, enquanto que quase dois terços (63%) aprovam a maneira como vem conduzindo a economia. Com o apoio do bom momento econômico (legado de Obama) e o menor desemprego em 50 anos e apoio de um partido servil, Trump se sente revigorado, pronto para fazer mais do mesmo. Ainda que o impeachment não fosse aprovado no final, a recusa dos republicanos em sequer ouvir testemunhas, procurar desqualificá-las e negar os fatos marca uma inflexão que se revelará danosa na vida política americana.
Desimpedido – Editorial | Folha de S. Paulo
Absolvição de Trump encerra teatro do impeachment; comédia democrata toma a cena
Em fevereiro de 1999, o então presidente americano Bill Clinton falou à nação após ser absolvido pelo Senado das acusações de perjúrio e obstrução de Justiça, que haviam levado a Câmara a aprovar um processo de impeachment.
“Eu sinto profundamente pelo que disse e pelo que fiz para provocar esses eventos”, afirmou. Ele havia rejeitado as acusações, mas pedido desculpas por ter tido um relacionamento com a estagiária Monica Lewinsky, estopim do caso.
Vinte e um anos depois, a história se repete de forma farsesca. Donald Trump aproveitou sua vez de ter o impeachment arquivado não para encenar um ato de contrição, mas para despejar um vitriólico discurso contra os adversários.
Visou em particular a presidente da Câmara, a democrata Nancy Pelosi, que dois dias antes havia se deixado ver rasgando o discurso do Estado da União de Trump. “Uma pessoa horrível”, disse o presidente.
Como se sabia de antemão, o republicano não perderia o cargo por ter pressionado o presidente da Ucrânia, Volodimir Zelenski, a investigar o filho de seu adversário democrata Joe Biden.
A acusação, séria e bem mais documentada do que a suposta interferência russa no pleito presidencial americano de 2016, deverá permanecer como um espinho na imagem de Trump, mas o processo de impeachment em si sempre foi um teatro político.
A questão lícita é saber se o eleitorado que goza de um ambiente econômico favorável, com a menor taxa de desemprego em 50 anos, punirá o presidente por uma acusação sem julgamento efetivo e pelo abuso de poder ao longo da tramitação de impedimento.
O mandatário detém a maior aprovação em pesquisas do instituto Gallup desde que assumiu o posto, de 49% —a outra metade dos americanos o rejeita, espelhando uma polarização cristalina no país.
As intrincadas regras eleitorais americanas, que permitiram a Trump ser eleito sem ter a maioria no voto popular, tendem portanto a favorecer o presidente se ele mantiver a estratégia de conquista de estados-chave no número de delegados no Colégio Eleitoral.
Mais que isso, o patético desempenho do Partido Democrata nas primárias de Iowa insinua que o republicano poderá ter um caminho facilitado pela inépcia do rival.
Naquele estado, passados quatro dias, não há uma definição de quem foi o vencedor da primeira prévia da temporada. À confusão adiciona-se o fato de que a disputa está pulverizada. Candidatos têm perfis díspares e nenhum, a esta altura, inspira confiança como um nome ideal para o pleito.
O espetáculo do impeachment está encerrado, e o pano sobe para o pastelão das prévias democratas.
Factoide tributário – Editorial | Folha de S. Paulo
Bolsonaro simula desafio pelo fim de tributo sobre gasolina e apequena governo
Um presidente da República, por mais vazio de ideias que se encontre, terá sempre enorme capacidade de pautar o noticiário e o debate público. Jair Bolsonaro testa a cada dia os limites desse poder.
Seu mais recente factoide —um arremedo de desafio aos governadores pelo fim da tributação dos combustíveis— constitui uma sandice identificável à primeira vista. “Eu zero o [imposto] federal se eles zerarem o ICMS”, alardeou o mandatário na quarta-feira (5).
Mesmo o evidente despreparo de Bolsonaro para o cargo que ocupa não chega ao ponto de imaginar ser exequível tamanho despautério, lançado em tom de bravata de mesa de bar. Ainda assim, foi o bastante para que o Planalto deixasse a posição defensiva na batalha política em torno do encarecimento da gasolina e do óleo diesel.
Justiça seja feita, uma carta assinada por 22 dos 27 governadores na segunda (3) alimentou a irracionalidade ao defender a imediata eliminação dos tributos federais sobre os combustíveis —o que representaria uma perda de receita de cerca de R$ 28 bilhões anuais.
Para os estados, uma hipotética isenção do ICMS para tais produtos teria impacto ainda mais dramático, perto dos R$ 90 bilhões ao ano. Os governadores se viram, pois, forçados a rechaçar a simulação de desafio presidencial.
Abrir mão de arrecadação seria irresponsabilidade suicida para um setor público que contabilizou déficit na casa dos R$ 400 bilhões no ano passado. Mais do que isso, conceder tamanho estímulo ao consumo de poluentes e ao transporte particular configuraria uma escolha governamental desatinada.
Sabe-se que impostos e contribuições sociais respondem por 44% do preço da gasolina, um percentual sem dúvida alto. Não se trata de caso isolado: o sistema tributário brasileiro onera em demasia o consumo de bens e serviços, o que prejudica sobretudo os estratos mais pobres da população.
É possível e desejável reduzir o peso da carga fiscal sobre o custo das mercadorias, mas medidas do gênero precisam ser compensadas com altas de outras receitas ou cortes de despesas. Esta Folha defende maior taxação direta dos rendimentos mais elevados.
A presepada de Bolsonaro, que talvez agrade a seus aliados caminhoneiros ou ajude a desviar a atenção sobre problemas de Brasília, acrescenta algo de caricato à desorientação já demonstrada por seu governo no debate tributário.
Escalada demagógica – Editorial | O Estado de S. Paulo
O presidente Jair Bolsonaro está levando longe demais seu confronto contra os governadores de Estado, atribuindo-lhes ruidosamente a responsabilidade pelo fato de os preços dos combustíveis não caírem mesmo com a redução promovida pela Petrobrás nas refinarias.
Pautado pelo burburinho das redes sociais, que exigem providências contra essa suposta distorção, Bolsonaro vem desde domingo passado acusando os governadores de impedirem a redução dos preços dos combustíveis ao não aceitarem uma diminuição do ICMS que incide sobre o produto. Primeiro, foi ao Twitter para dizer que “pela terceira vez consecutiva baixamos os preços da gasolina e do diesel nas refinarias, mas os preços não diminuem nos postos”. A razão disso, segundo o presidente, é que “os governadores cobram, em média, 30% de ICMS sobre o valor médio cobrado nas bombas dos postos e atualizam apenas de 15 em 15 dias, prejudicando o consumidor”. Para Bolsonaro, “os governadores não admitem perder receita”, e defendeu a elaboração de um projeto de lei que fixe uma alíquota por litro de combustível.
A reação dos governadores foi imediata. Na segunda-feira, 23 deles emitiram nota conjunta para se queixar de que tão importante debate tenha sido deflagrado pelo presidente nas redes sociais, e não “nos fóruns institucionais adequados e com os estudos técnicos apropriados”. Também salientaram que o ICMS é imposto previsto na Constituição como a principal receita dos Estados. Ou seja, qualquer redução na arrecadação afetaria o fornecimento de serviços como segurança, saúde e educação. Além disso, os governadores lembraram ao presidente que os Estados são autônomos para definir a alíquota de ICMS e que esse imposto responde por 20%, em média, da arrecadação.
Anteontem, Bolsonaro manteve o tom e respondeu com um “desafio”: “Eu zero o (imposto) federal se eles zerarem o ICMS”. Ele negou que esteja “brigando com governadores”, mas declarou que “pelo menos a população já começou a ver de quem é a responsabilidade” pela manutenção dos preços dos combustíveis nos postos. Mais uma vez, a reação dos governadores foi contundente. Para o paulista João Doria, responsabilizar os governadores “é uma atitude populista e, a meu ver, pouco responsável”. Já o gaúcho Eduardo Leite argumentou que, se o presidente estivesse realmente interessado em resolver a questão, não o faria pelas redes sociais. “Nós clamamos por um debate responsável nos fóruns adequados”, disse o governador.
Em lugar de arrefecer os ânimos ante a reação negativa quase unânime dos governadores, Bolsonaro elevou ainda mais o tom. Na saída do Palácio da Alvorada, o presidente declarou: “Gasolina baixou na refinaria hoje e quanto acham que vai baixar na bomba? Zero. Estou fazendo papel de otário aqui”. Reiterou que vai enviar ao Congresso um projeto de lei para mudar o ICMS sobre os combustíveis e, ciente de que enfrentará muita resistência dos parlamentares, afirmou que “eu faço o que posso” e “o Parlamento existe para dizer sim ou não”.
Sem partido e sem grupo político definido, Bolsonaro sente-se livre para indispor-se com todos os governadores ao mesmo tempo. Seu objetivo, como resta evidente, é demonstrar que seu único compromisso é com o “povo”, a quem invocou várias vezes nos últimos dias. Primeiro, declarou que, se os Estados estão em dificuldade, “mais dificuldade que a do Estado é a do povo, que não aguenta mais pagar R$ 5,50 o litro da gasolina e o caminhoneiro pagar R$ 4,00 o litro do diesel”. Depois, declarou: “Chega desse povo sofrer. Isso não é populismo, é vergonha na cara. Ou você acha que o povo está numa boa?”.
Há tantas impropriedades nesse “debate” que seria mais exato qualificá-lo de briga de rua. Está claro que para Bolsonaro não interessam nem a situação precária das contas estaduais, nem a autonomia tributária dos entes subnacionais, nem o fato de que o preço dos combustíveis é livre. O que interessa é apresentar-se como um líder preocupado com o “povo”, enquanto os governadores só querem saber de cobrar impostos.
Copom indica o fim de um ciclo – Editorial | O Estado de S. Paulo
O quinto corte consecutivo da taxa básica de juros, a Selic, decidido por unanimidade pelo Comitê de Política Monetária (Copom) do Banco Central (BC) na reunião encerrada na quarta-feira passada – embora menor, de 0,25 ponto porcentual (os anteriores foram de 0,5 ponto) –, era previsto pelos analistas das principais instituições financeiras, mas pode representar o fim de um ciclo. Em nota divulgada no encerramento de sua reunião, com texto em geral cauteloso a respeito da evolução das economias brasileira e mundial, o Copom foi, porém, claro ao dizer que “vê como adequada a interrupção do processo de flexibilização monetária”.
Há quem interprete essa afirmação apenas como uma pausa no alívio da política monetária, o que significa que, se as condições conjunturais favorecerem, nova redução poderá ser decidida daqui a algum tempo. Outros veem como encerrado o período de queda da Selic, agora fixada em 4,25% ao ano, no menor nível da série iniciada em junho de 1996 (em julho do ano passado, no início do ciclo de baixa, estava em 6,5% ao ano).
Além de claro a respeito da “interrupção” do ciclo, o comunicado do Copom tem partes que merecem alguma reflexão. A respeito da atividade econômica, por exemplo, afirma que os dados conhecidos desde sua reunião anterior “indicam a continuidade do processo de recuperação gradual da economia brasileira”. A expressão “recuperação gradual” contém algum grau de imprecisão, pois pode sugerir tanto uma economia cuja expansão se acelera como uma que só aos poucos vem ganhando algum vigor.
Na verdade, porém, dados recentes, como os da atividade industrial, são negativos, mostrando a dificuldade de alguns importantes segmentos da economia em adquirir uma tração firme de crescimento. Os dados gerais, embora indiquem alguma expansão, mostram uma recuperação ainda muito lenta.
Na avaliação dos cenários para a inflação, o Copom é cauteloso e observa que a flexibilização monetária atua com defasagem sobre a economia e pode “elevar a trajetória da inflação” no horizonte utilizado para balizar suas decisões. O risco se acentua na medida em que a potência da política monetária aumenta em decorrência da maior fluidez na intermediação financeira e no mercado de crédito e de capitais. Em outras palavras, quanto mais eficaz o funcionamento do mercado, maior o impacto das decisões de política monetária.
Ao contrário do que têm marcado as análises internacionais, a epidemia de coronavírus – originária da China e apontada com alto poder para afetar a evolução do comércio e da atividade econômica mundiais – não consta explicitamente da nota do Copom. Embora observe que a “deterioração do cenário externo” pode se tornar um fator de risco para a trajetória da inflação, o Copom refere-se apenas ao “recente aumento de incerteza” no quadro internacional.
Mas os membros do Copom parecem tranquilos no momento com o cenário mundial, pois a nota diz que as políticas monetárias das principais economias ainda produzem um ambiente favorável para os países emergentes, entre eles o Brasil. Talvez essa avaliação tenha de ser revista nas próximas notas da autoridade monetária sobre a situação internacional.
O Copom observou que o quadro econômico “recomenda cautela” e que suas próximas decisões “continuarão dependendo da evolução da atividade econômica, do balanço de riscos e das projeções e expectativas de inflação”.
Quanto às reformas, o Copom reafirma que elas são essenciais para a preservação da política monetária e para a recuperação da economia”. Mostra a importância de sua continuidade e avalia que o processo “tem avançado”. Houve algum avanço no ano passado, de fato, mas a continuidade do avanço depende de iniciativas firmes do governo do presidente Jair Bolsonaro em favor das reformas. Essas iniciativas até agora não foram observadas.
Triunfo de Trump, risco para o mundo – Editorial | O Estado de S. Paulo
Em política não há prognósticos inscritos em pedra. O que hoje é dado como certo, amanhã pode ser atropelado por um caminhão de imponderabilidades. Não seria seguro, portanto, apostar que a reeleição do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, são favas contadas. Mas ele nunca reuniu elementos tão favoráveis à sua vitória na eleição de novembro como agora.
Como esperado, o Senado americano, de maioria republicana, absolveu o presidente Trump das acusações de abuso de poder e obstrução do Congresso, crimes de responsabilidade que poderiam apeá-lo da Casa Branca. O resultado da votação foi acachapante. Para destituir Trump do cargo, os democratas precisariam reunir dois terços dos 100 senadores, o que significa que para esse quórum ser atingido seria necessário que 20 republicanos votassem contra Trump. Só um o fez, e mesmo assim apenas na acusação de abuso de poder: o senador Mitt Romney, antigo desafeto político do presidente.
Livre das pesadas acusações que poderiam culminar no seu impedimento, Donald Trump agora pode se concentrar na campanha pela reeleição, que, a julgar pela confusão no processo inicial de escolha do candidato democrata, deverá ser relativamente tranquila para o atual mandatário. A descontração de Trump é tal que o presidente se permitiu até tripudiar da falha amadora na apuração dos votos no caucus do Partido Democrata em Iowa. Diante da trapalhada – os democratas não testaram previamente o sistema de apuração, que apresentou problemas –, Trump afirmou ter sido ele, e não um democrata, o grande vencedor daquela votação. Ao Partido Democrata só restou a humilhação no pontapé inicial do processo de escolha de seu candidato à presidência.
Ao pronunciar o discurso anual sobre o Estado da União, no dia 4 passado, o presidente Donald Trump, evidentemente, ainda não tinha conhecimento do resultado da votação final de seu processo de impeachment no Senado, que só ocorreria no dia seguinte, mas já estava confortável o bastante para usar a tribuna da Câmara dos Representantes como palanque para sua campanha de reeleição. Mais do que falar dos planos para seu quarto e último ano de mandato, Trump dedicou grande parte do discurso para projetar o que será o próximo quadriênio caso seja reeleito. Sem cerimônia, o presidente transformou o que deveria ser um ato cívico solene em uma deliberada autopromoção, bem a seu estilo.
Esta, aliás, talvez seja sua maior qualidade. Ninguém “vende” melhor Donald Trump do que ele mesmo. O presidente americano é hábil em reverter em seu benefício situações adversas. Tanto melhor quando a situação nem é tão adversa assim. A economia dos Estados Unidos vive ciclo de expansão contínua há mais de 120 meses. O desemprego no país é baixíssimo, menos de 4%, o que, na prática, significa pleno-emprego. Junte-se a isso o fato de Donald Trump ter conseguido estabelecer uma forte conexão emocional com seus eleitores mais fiéis, notadamente nos setores agrícola e industrial de Estados alijados dos ganhos da globalização e pronto, tem-se um candidato virtualmente imbatível.
Tudo conspira a favor de um novo triunfo eleitoral de Trump, agora não mais como um outsider. Se ele sairá ou não vitorioso do pleito, o tempo dirá. Mas a democracia liberal certamente perderá um tanto mais de seu viço com uma vitória de Trump. Com ele, sedimenta-se a perniciosa ideia de que em política vale tudo, vale a disseminação de fake news, vale o ataque à liberdade de imprensa, vale a pressão ilegítima sobre aliados, vale a desconstrução dos organismos multilaterais que garantiram a ordem mundial vigente no pós-guerra.
O triunfo do nacional-populismo de Donald Trump deu azo à ascensão de líderes afins em outros países, inclusive no Brasil. Quando os valores iliberais de um movimento como este vicejam na nação que já foi o farol para o mundo democrático, há muito com o que se preocupar.
STF atenua erro da revogação da prisão na 2ª instância – Editorial | O Globo
Em julgamento inconcluso, Corte pelo menos dificulta manobra da impunidade pela via da prescrição
O tamanho do equívoco cometido pela maioria do Supremo, por apenas um voto, ao reverter a jurisprudência do início do cumprimento da pena a partir da sua confirmação em segunda instância, levou o Congresso, mesmo com uma bancada que comemorou o veredicto, a tentar consertar o erro. Por meio de projeto de lei e de emenda à Constituição. Mesmo no Supremo esboça-se algum atenuante, mas que não é suficiente.
O sinal positivo vem do julgamento de um recurso pelo qual um condenado por tráfico internacional de drogas apelou ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) pela prescrição do seu caso. Na primeira instância, recebeu a pena de um ano e 10 meses de prisão e, na segunda, ela foi convertida em restrição de direitos.
Por sete votos a dois, a Corte entende que a condenação em segundo grau interrompe a contagem de tempo para a prescrição. O presidente do Supremo, ministro Dias Toffoli, pediu vista para esperar o retorno de Celso de Mello de uma licença médica. Que a maioria já alcançada não seja revertida por mudanças de voto.
O entendimento, se passar a ser adotado, obstrui uma das rotas de fuga que corruptos sempre utilizaram para continuar impunes, sendo esta uma das piores características da permissiva sociedade brasileira com delitos de ricos e poderosos.
É conhecida a estratégia de quem pode contratar os serviços de bons e caros advogados para usar o cipoal da legislação e sua indústria de recursos, a fim de ganhar tempo. Depois, é só esperar a prescrição do crime, deixando as cadeias preferencialmente para pobres e desprovidos de poder. Ciclo recente do combate à corrupção foi ponto fora da curva.
A revogação da jurisprudência da prisão em segunda instância — que vigorou de 2016 ao final do ano passado, mas foi seguida de 1945 a 2009, sem problemas — potencializa a eficácia desta manobra e acentua a percepção da sociedade de que políticos e empresários se beneficiam de forma especial desta cultura da impunidade.
É grande o mérito da maioria parcial na Corte em favor do desligamento do relógio da prescrição na segunda instância, mas se trata de atenuante.
Precisam seguir em frente, portanto, as iniciativas no Congresso para que sejam revistos no arcabouço jurídico dispositivos que dão margem a interpretações de inconstitucionalidade da prisão em segunda instância. Como em novembro do ano passado no STF.
Ao comparecer à Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, na quarta, a fim de ser ouvido sobre a proposta de emenda à Constituição, PEC, de nº 199, para o retorno da jurisprudência, o ministro aposentado do STF Cezar Peluso, que presidiu a Corte, refirmou sua posição favorável à tese da segunda instância.
Em 2011, Peluso propôs a “PEC dos recursos”, com idêntico objetivo. O movimento benigno pela volta da jurisprudência anterior não é novo.
Turbilhão de crises mostra que é preciso apressar concessão da Cedae – Editorial | O Globo
Problema da geosmina, que deixou água com cheiro e gosto ruins, nem acabara, e já surgiu o do detergente
No intervalo de apenas um mês, a Cedae impôs um dilema aos cerca de 9 milhões de moradores da Região Metropolitana do Rio abastecidos pela companhia estadual. Num primeiro momento, forneceu água que contrariava os princípios elementares de um líquido incolor, insípido e inodoro. A água da Cedae era turva, tinha mau cheiro e gosto de terra. A flagrante distorção alarmou a população, que correu para os supermercados e esvaziou prateleiras de água mineral.
A empresa atribuiu o problema à presença de geosmina, substância produzida pelas algas e que costuma proliferar quando há grandes quantidades de esgoto. Como medida paliativa, a estatal passou a utilizar carvão ativado e argila para tentar melhorar a qualidade da água. A situação não estava ainda resolvida quando surgiu outro contratempo: foi detectado detergente na água. O que levou ao fechamento da Estação de Tratamento do Guandu por cerca de 14 horas a partir da noite de segunda-feira. O resultado, previsível, é que as torneiras secaram em 67 bairros da capital e de seis municípios da Baixada Fluminense. Chegou-se a esse ponto: ou se tem água com geosmina e detergente ou não se tem água alguma.
O problema da geosmina é crônico. Há tempos, os rios que abastecem cariocas e demais fluminenses estão afogados em esgoto. Reflexo da ineficiência de uma companhia que não investe em saneamento. Grande parte dos municípios cortados pelo Paraíba do Sul e pelo Guandu tratam parcela ínfima de esgoto — quando o fazem. Os rios Poços, Queimados, Cabuçu e Ipiranga, que deságuam perto do ponto de captação, estão imundos. Como não consegue resolver o despejo de esgoto, a Cedae anunciou que pretende fazer a transposição desses cursos d’água.
Quanto ao detergente, embora não se saiba ainda a origem do produto, a sua presença nos mananciais aponta para outro grave problema: a poluição industrial na Bacia do Paraíba do Sul.
Infelizmente, a população não costuma ser informada sobre a qualidade da água que lhe é servida. A Agenersa, agência reguladora que deveria fiscalizar a Cedae, tem se notabilizado mais por ser um cabide empregos. Mais um.
O fato é que a população não pode ficar refém da inépcia da Cedae. Aparentemente, o problema do detergente foi superado. O da geosmina, não totalmente. Diante do histórico da empresa estatal, imagina-se qual será a próxima fonte de dor de cabeça. Nesse sentido, é essencial que se apresse o processo de privatização da companhia, cuja modelagem está sendo feita pelo BNDES. O turbilhão de crises no Guandu chegou ao limite. E a paciência dos fluminenses também.
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