- Folha de S. Paulo / Ilustríssima
A
adesão e o repúdio ao autoritarismo conservador de Jair Bolsonaro demonstram
com clareza as distinções históricas de duas correntes do liberalismo no país,
diz cientista político. Embora ambos tenham sido acometidos em períodos de
crise pela tentação do golpismo, os liberais democratas têm como princípio
central a defesa das liberdades individuais e políticas, o que pode trazer no
bojo também a econômica, enquanto os neoliberais veem no livre mercado a razão
de ser da ordem social, mesmo que às custas do desgaste do Estado de Direito.
O tema do
neoliberalismo está em voga desde a década de 1980, quando a
crise da social-democracia europeia trouxe a crítica do planejamento econômico
pelo Estado e a defesa do liberalismo econômico como fórmula capaz de superar a
estagnação.
Nos
últimos dez anos, seu prestígio cresceu e seus
partidários aderiram à chamada "nova direita", parte da
qual viria a apoiar o governo Bolsonaro. O debate público sobre o conceito de
liberalismo é intenso. Hoje, o tema guarda grande atualidade, tendo em vista o
referido endosso de Paulo Guedes e de maioria dos neoliberais brasileiros às
tendências conservadoras e autoritárias de Jair Bolsonaro.
Entre
os pretendentes dessa ideologia política, a
querela gira em torno de um liberalismo democrático inimigo do
autoritarismo político (a vertente liberal democrata), que mantém relações
pragmáticas com a economia, e um outro, para quem a liberdade política depende
essencialmente da econômica, ponto
de vista segundo o qual o verdadeiro autoritarismo seria a intervenção do
Estado na economia (a vertente neoliberal).
Os
neoliberais se apresentam como “liberais”, ou como sendo os “autênticos
liberais”, alinhando-se, todavia, a pautas reconhecidamente conservadoras em
sua dimensão política. Tentam, assim, conciliar em abstrato a distinção
histórica entre conservadorismo e liberalismo, sem deixar de aderir a uma
coalizão de vocação autoritária, que conta com
conservadores reacionários (olavistas) e estatistas (militares).
Eles
enfrentam sempre a oposição de outros “liberais”, que se pretendem
progressistas e negam a compatibilidade entre liberalismo e conservadorismo ou
autoritarismo político.
Vários
estudiosos conferiram grande importância à questão das chamadas famílias,
tradições ou linhagens do pensamento político brasileiro. Esse tipo de
classificação tem entre suas vantagens a capacidade de servir de anteparo
ao presentismo:
a tentação de ver os problemas do momento atual como puramente inéditos. Assim,
podemos revisitar a tradição do liberalismo brasileiro, buscando suas
regularidades no tempo.
Desde
o começo do século 19, os liberais associaram o suposto atraso brasileiro a um
problema de origem. A baixa capacidade de os portugueses estabelecerem as bases
de uma civilização moderna nos trópicos, a influência da Igreja Católica, a
concentração da grande propriedade agrária e a escravidão teriam produzido uma
sociedade civicamente egoísta, indiferente à ciência, dependente de um Estado
autoritário e patrimonial, avessa ao indivíduo autônomo e incapaz de cooperação
—como
descrito, por exemplo, por Raymundo Faoro em “Os Donos do Poder” (1958).
Para
além do transplante de instituições anglo-saxãs, o programa
liberal inspirado por Stuart Mill tem
se pautado por políticas públicas voltadas para a abertura comercial e
cultural, para a descentralização político-administrativa, desregulação
econômica e redução da burocracia.
Do ponto de
vista político, o liberalismo brasileiro de tendência democrática manifesta um
certo centrismo. O mais destacado intelectual liberal
brasileiro do período pós-independência, Evaristo da Veiga, já celebrava a
moderação como a virtude política por excelência. Essa postura confere aos
liberais um dinamismo de se deslocar para a direita ou para a esquerda,
conforme percebam a ameaça autoritária vindo de um dos lados opostos,
socialista ou conservador.
No governo, o liberalismo democrático brasileiro tende a ser mais cauteloso, hesitando a respeito da conveniência e do ritmo da expansão dos direitos sociais e políticos. Acreditando que a colonização teria conformado uma sociedade inclinada a soluções políticas messiânicas, populistas e estatistas, os liberais acabam por não confiar no “bom senso” das massas. Daí a tendência a um excesso de moderação que conduz ao elitismo, ou seja, a circunscrever o centro decisório a uma minoria homogênea de cidadãos em termos de renda e cultura.
Desde
que a democratização começou a surgir no horizonte, a partir da Campanha
Abolicionista com Joaquim Nabuco e, depois, com a Campanha Civilista de Rui
Barbosa, a classe média entrou no radar dos liberais. Como segmento social,
exprimiria as qualidades da sociedade civil, por sua sensibilidade a temas como
participação política, liberdade, mérito e moralidade.
Entretanto,
por vezes, os liberais democráticos se perceberam em um clima de polarização
entre a esquerda e a direita radicais que reduzia o seu espaço de atuação em
defesa das liberdades públicas e inclinava o país para o autoritarismo. A
sociedade brasileira parecia não se adequar à pedagogia dos valores
cosmopolitas liberais.
Inoculada
nas massas, a hostilidade a esses valores inclinaram-nas à tutela de um líder
carismático; daí a fortuna de um conceito controverso como o de “populismo”
tanto entre liberais quanto entre socialistas cosmopolitas. Tal diagnóstico
leva muitos liberais democráticos a periodicamente advogarem mecanismos
institucionais como o parlamentarismo e o judiciarismo.
Este
último é uma velha aspiração que data da queda da Monarquia e encontrou seus
grandes defensores em Rui Barbosa e Pedro Lessa, para quem a
República transferira para o Supremo Tribunal a função arbitral exercida antes
pelo Poder Moderador.
Somente
na Nova República, todavia, com a retirada de cena do Exército, o judiciarismo
se tornou hegemônico, auxiliado pelo desenho institucional da Constituição de
1988. No começo do século 21, voltou a ser apresentado como um remédio para as
tendências corruptoras e oligárquicas da representação política.
Em
épocas de polarização e crise aguda do Estado de Direito, quando as
instituições constitucionais parecem indiferentes ou hostis à cultura do
liberalismo, nasceu frequentemente entre os liberais democratas brasileiros a
tentação do golpismo.
Desde
1889, o liberalismo nacional tendeu a encarar esse recurso como legítimo em
momentos críticos para salvar a liberdade contra seus inimigos percebidos como
autoritários. Quem melhor representou essa ambiguidade foi o próprio Rui
Barbosa. O temor de um eventual reinado reacionário da princesa Isabel o fez
embarcar no golpe militar e a se tornar ministro da ditadura republicana,
interpretada por ele como um autoritarismo transitório que preparava um Estado
de Direito mais sólido, conforme o figurino estadunidense.
Depois
de combater o militarismo dos presidentes Floriano Peixoto e Hermes da Fonseca,
Rui voltou a cogitar a intervenção do Exército no começo dos anos 1920, quando
lhe pareceu que a República marchava de novo para o autoritarismo.
O golpe de
1964 também foi apoiado por liberais democratas, a exemplo de Afonso
Arinos e Carlos Lacerda, como um breve período de exceção destinado a afastar o
risco de ameaça comunista. Na prática, em todas essas ocasiões, os liberais
brasileiros só participaram de uma “jornada de otários”, que precipitou o
advento de um autoritarismo de direita que terminou por voltar-se contra eles e
persegui-los como subversivos.
Embora
se imagine sempre uma correlação automática entre liberalismo econômico e
político, essa relação, ao longo dos últimos três séculos, é mais complexa e
nem sempre de fácil distinção. Se a liberdade de mercado é parte das liberdades
modernas, o foco sobre a liberdade política, aquela plasmada na forma dos
direitos e das garantias constitucionais, distingue o liberalismo democrático
daquele que via no livre mercado o objetivo principal de uma ordem liberal.
A
esta última vertente poderíamos chamar de libertarianismo econômico, ou
neoliberalismo. Surgido pelas mãos de Herbert Spencer por
volta de 1880 como reação ao processo de democratização política, impulsionado
pelo socialismo e pelo alargamento do sufrágio, o neoliberalismo consiste em um
híbrido de liberalismo e conservadorismo: ao mesmo tempo em que apresenta
características liberais, como o individualismo, eleva o mercado à condição de
gerador e ordenador da vida social, intangível porque produto de forças
extra-humanas —uma suposta “ordem espontânea” do universo social fruto da
interação não planificada entre os indivíduos.
Os
neoliberais apresentam seus argumentos em uma roupagem supostamente “técnica”
ou “científica”, defendendo suas posições como as únicas “realistas”, não
capturadas pela tentação idealista e normativa da mentalidade planificadora e
maximizadora do Estado que teria marcado as ideologias democráticas desde o
século 18, como se notaria tanto nos liberais quanto nos socialistas.
Na
ideologia neoliberal, a função do
Estado é essencialmente a preservação das condições de competição dos
indivíduos no mercado. A justiça social é produto das leis do
mercado, cujo livre funcionamento por parte de empresários “empreendedores” e
criativos, em um contexto de população tecnicamente educada, geraria de forma
mais ou menos automática riqueza pública e emprego, através de sucessivos ganhos
de produtividade.
Para
os neoliberais, o Brasil estaria sempre patinando entre a barbárie e a
estupidez, carecendo constantemente de abertura comercial e financeira para o
mercado exterior. Aqui, empreender teria muito mais obstáculos a enfrentar
devido à ausência de uma cultura moderna, ou seja, capitalista. Em contraste,
os países do Atlântico Norte costumam ser referenciados como modelares.
O
cosmopolitismo neoliberal demonstra, coerentemente, grande apreço a organismos
internacionais —mas não os de caráter político, como a Liga das Nações ou a
ONU, enaltecidas pelos liberais democratas, e sim os financeiros, como o FMI,
bancos e empresas multinacionais.
E
se é verdade que ambas as tradições liberais podem ter uma aproximação
instrumental com o autoritarismo, no caso dos neoliberais essa dimensão é muito
mais acentuada. De todo esse diagnóstico negativo dos libertários econômicos
sobre a situação do Brasil resultava um descompromisso ainda maior com a
democracia.
A
necessidade de um choque civilizador de capitalismo vindo de fora justificava
métodos autoritários. A marca acentuadamente demofóbica já estava
presente nos fundadores libertários da República, como os irmãos
Alberto e Campos Sales, que ajudaram a urdir o golpe de 1889 contra os liberais
e defendiam a toda força o presidencialismo, na crença de que só um governo
forte e enérgico poderia enfrentar o “socialismo”.
No século 20, Eugênio Gudin e Roberto Campos demonstraram idêntico descaso com o regime democrático. Diziam que as constituições de 1946 e 1988, por não corresponderem às suas doutrinas, eram produtos da ignorância e da utopia. Como nenhuma delas resolvia os problemas do país, duravam pouco e mereciam, por isso, o desprezo geral.
Muitas
tensões marcaram a convivência dos dois liberalismos, o democrático e o
neoliberal, em nosso país. Para Rui Barbosa, o presidente Campos Sales era o
grande artífice do conservadorismo da Primeira República. Ele acusava Sales de
autoritário, oligarca e corruptor, assim como via na política neoliberal de seu
ministro da Fazenda, Joaquim Murtinho, uma cortina de fumaça doutrinária destinada
a favorecer os interesses internacionais. Já Sales e Murtinho chamavam Rui de
subversivo e tendente ao socialismo, criticando sua política econômica.
Quando
o regime militar impôs a Constituição de 1967, o liberal democrata Afonso
Arinos também se queixou de que a nova Carta continha “excessivo liberalismo
econômico em contraste com o autoritarismo político”. Em defesa dela, os
neoliberais Gudin e Roberto Campos justificaram o fortalecimento do Executivo
pela necessidade de passar as reformas modernizadoras de corte libertário.
Roberto
Campos também se estranhou publicamente com Carlos Lacerda, quando este atacou
sua política neoliberal como própria de tecnocratas e defendeu uma abordagem
pragmática da economia. No livro “Brasil entre a Verdade e a Mentira” (1965),
Lacerda invocou em seu apoio a autoridade de Rui Barbosa, cuja obra defendeu
contra Murtinho e Campos.
Apoiador
de primeira hora do golpe militar, Lacerda
acabou preso após o AI-5 e teve seus direitos políticos cassados. Também
para ele, a adesão ao golpismo resultou numa “jornada de otários”. A história
se repetiu recentemente, com a adesão dos liberais democratas ao
lavajatismo como método de deposição da esquerda. Ao invés de
chegarem ao reino da liberdade republicana, esquentaram a cama para Jair
Bolsonaro se deitar.
Depois
de 1990, os liberais democratas recuperariam o discurso do liberalismo
econômico, voltando a apresentar um ponto de contato com os neoliberais. Nem
por isso se tornariam a mesma coisa. Em suas
memórias, “A Lanterna na Popa” (1994), Roberto Campos lamentou as
brigas com Arinos e Lacerda: “Foi tudo um grande desencontro...”. Ele estava
errado. Embora aparentados do ponto de vista “macro ideológico”, o liberalismo
democrático e o neoliberalismo, como já se percebia então, são ideologias
distintas.
O
liberalismo democrático, que representa o tronco principal da linhagem, na
segunda metade do século 19 já havia, por meio de Stuart Mill, renunciado a
aspectos secundários da doutrina, como o voto censitário e o liberalismo
econômico, vinculados ao governo oligárquico e plutocrático.
O
neoliberalismo, ao contrário, surgiu como uma reação conservadora à adaptação
do liberalismo ao ambiente democrático, destinado a preservar a dimensão
oligárquica e plutocrática do Estado de Direito. Onde os liberais viam
democracia, os neoliberais passaram a ver socialismo. Longe de preservar o
liberalismo oitocentista, os neoliberais deliberadamente o reformularam,
modificando seus fundamentos, para se concentrar, quase que
exclusivamente, na defesa do
Estado mínimo.
O
atual contencioso em torno do autoritarismo conservador de Bolsonaro demonstra
com clareza a distinção de neoliberais e liberais democratas. A adesão de
Paulo Guedes e seus admiradores ao bolsonarismo representa somente a
manifestação, nos dias de hoje, do genótipo característico dos
neoliberais brasileiros, de natureza plutocrática e oligárquica.
Basta
lembrar que no passado apoiaram as
ditaduras dos marechais Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto, a
oligárquica República Velha e o
regime militar de 1964 durante pelo menos dez anos. Como diz o
Eclesiastes, não há nada de novo sob o sol...
*Christian Edward Cyril Lynch, professor do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), é autor de ‘Da Monarquia à Oligarquia: História Institucional e Pensamento Político Brasileiro (1822-1930)’ (ed. Alameda), entre outros livros
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