Joe
Biden imagina-se, com boas razões, na posição ocupada por Franklin Roosevelt em
1933. Seu pacote fiscal de US$ 1,9 trilhão aquecerá uma economia que já retomou
a expansão, direcionando-a para tecnologias transformadoras. Seus primeiros
gestos diplomáticos revitalizam as alianças transatlântica e transpacífica que
sustentam a influência global dos EUA. Mas nada disso minimizará as
consequências de um pecado capital: seu governo segue o roteiro do nacionalismo
vacinal de Donald Trump.
O nacionalismo vacinal é a regra entre os países ricos. O Canadá comprou vacinas para imunizar cinco vezes sua população, mas enfrenta dificuldades com o lento fornecimento de doses. A União Europeia adquiriu vacinas em abundância, mas o fez tarde demais e enfrenta carência de imunizantes. Por isso, em desespero, ameaça invocar o Artigo 122 do Tratado da UE, uma lei extraordinária, para impedir a exportação de doses da Oxford/AstraZeneca produzidas em seu território ao Reino Unido. O governo britânico, que aplicou rapidamente a primeira dose em dois quintos da população, impôs um controle oculto à exportação de vacinas.
“As
vacinas são para braços americanos primeiro”, declarou Biden, alinhando-se ao
nacionalismo vacinal de Trump. Os EUA utilizam a Lei de Produção de Defesa,
instrumento criado durante a Guerra da Coreia (1950-53), para impedir
exportações de imunizantes sem autorização federal. O America First não
terminou com a troca de comando na Casa Branca, mas retraiu-se à esfera da
vacinação.
Há
exceções pontuais dignas de nota. O Quad, articulação de segurança patrocinada
pelos EUA que abrange Japão, Índia e Austrália, prometeu fornecer um bilhão de
doses aos países do Sudeste Asiático, num gesto de contenção da influência
regional da China. Há pouco, Washington concordou em remeter suas doses
estocadas da Oxford/AstraZeneca ao Canadá e ao México. Nesse caso, a
“generosidade” é apenas uma extensão do nacionalismo vacinal: a reabertura da
fronteira norte depende da imunização no Canadá, e a pandemia só poderá ser
declarada extinta nos EUA quando o México vacinar a maior parte de sua
população.
A
vacinação em massa nos EUA, além de medida sanitária urgente, é parte da
estratégia geopolítica de Biden, que depende de uma pujante retomada do
crescimento econômico. Mas o nacionalismo vacinal implica renúncia à projeção
de influência americana em vastas áreas do mundo em desenvolvimento. China e
Rússia agem, agressivamente, para preencher o vácuo.
Três
vacinas de origem chinesa (Sinopharm, Sinovac e Cansino) são os principais
imunizantes aplicados em parte do Sudeste Asiático, no Paquistão, na Turquia e
em países da África do Norte. A Sputnik V, de origem russa, também difundiu-se
por países da Ásia Central e do Oriente Médio, da África e mesmo da Europa
Central (Hungria e Sérvia).
Pior
para os EUA, do ponto de vista geopolítico, é o sucesso da diplomacia vacinal
chinesa e russa na América do Sul. O Brasil vacina essencialmente com o
imunizante da Sinovac, algo que obrigou o governo Bolsonaro a desistir da
aventura insana de barrar a chinesa Huawei do leilão de 5G. No Chile, único
país que imuniza velozmente na região, mais de 90% das doses aplicadas são da
vacina da Sinovac, sobrando à da Pfizer/BioNTech cerca de 8%. A Argentina, por
sua vez, depende principalmente da Sputnik V.
A
vacina da Pfizer/BioNTech é quase exclusivamente aplicada em países ricos. A
vacina da Moderna não foi nem sequer oferecida a países em desenvolvimento. A
África do Sul adquire o imunizante da Oxford/AstraZeneca por mais de duas vezes
o preço pago pela União Europeia. A África inteira, com população de 1,3
bilhão, só garantiu 300 milhões de doses para os próximos meses.
Tedhros Adhanom, da OMS, descreveu o cenário como um “fracasso moral catastrófico”. Na hora decisiva da pandemia, o abandono do mundo em desenvolvimento pelos EUA e por seus aliados europeus tende a provocar, ao lado do “fracasso moral”, uma marcante redução da influência global das potências ocidentais. A sombra destrutiva de Trump ainda pesa sobre a Casa Branca.
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