Quando
os historiadores do futuro olharem para os tempos atuais, possivelmente
encontrarão na terceira semana de março de 2021 um bom roteiro para entender
como chegamos ao ponto em que estamos. Na terça-feira à noite, Jair Bolsonaro
fez um pronunciamento em que, sem nenhum pudor, tentou reescrever a história de
como sabotou quanto pôde as iniciativas de negociação e compra de vacinas para
a prevenção da Covid-19.
No
mesmo dia, do lado oposto da Praça dos Três Poderes, a decisão do Supremo que
concluiu pela parcialidade do ex-juiz Sergio Moro, no caso de Lula, fez brotar
na outra ponta do espectro político a narrativa que tenta editar a realidade,
apagando a corrupção comprovada e confessada à exaustão.
De
formas diferentes, os dois episódios dizem muito sobre o que nos tornamos.
Bolsonaro declarou que sempre considerou o vírus um grande desafio, pensando talvez que alguma lavagem cerebral vá apagar da mente dos brasileiros a expressão “gripezinha”. Recitou sempre ter afirmado que compraria qualquer vacina aprovada pela Anvisa, quando estão amplamente registrados, em vídeos, tuítes e discursos, seu desprezo pela vacinação e as repetidas afirmações de que não compraria a “vacina chinesa do Doria” — sem contar sua mania de sugerir que vacinas têm efeitos danosos à saúde.
O
presidente da República disse também que, no final do ano, o Brasil terá
garantido 500 milhões de doses para imunizar toda a população. É pelo que
torcemos todos os dias, mas garantir isso com base em encomendas de dezenas de
milhões de doses que não se sabe ao certo quando chegam só pode ser má-fé.
Embora
seja aviltante, não é um comportamento surpreendente. Bolsonaro sempre foi
movido pela disseminação de desinformação e de notícias falsas. Sua versão da
realidade invariavelmente é composta de um pastiche de fatos que lhe convêm.
Mas
todo o sofrimento e as falácias perpetradas pelo presidente da República
aparentemente não serviram de alerta para o perigo de tentar reescrever a
história usando apenas os fatos que interessam.
Também
televisionada e comentada em tempo real, a decisão do Supremo sobre Moro foi
celebrada como uma permissão para que se esqueça o que ocorreu no Brasil nas
últimas décadas. Não é.
As
atitudes da república de Curitiba e as mensagens da Vaza-Jato precisam entrar
para a história da mesma forma que as confissões dos delatores da Odebrecht e
as provas que demonstram como ocorreram e quem ganhou com desvios bilionários
na Petrobras, na Eletrobras e na Sete Brasil, apenas para citar alguns casos.
Para
quem respeita os fatos mais do que as narrativas, a decisão de Gilmar Mendes de
impedir a posse de Lula na Casa Civil de Dilma Rousseff, depois que Moro
autorizou a divulgação dos áudios grampeados fora do prazo legal, deveria
figurar nos anais com a gravação do telefonema em que o mesmo Mendes se propõe
a ajudar Aécio Neves a pressionar um senador a votar pela aprovação de uma lei
de abuso de autoridade.
Ficaria
bem, aliás, se colocada na mesma seção que o choro do ministro do Supremo em
homenagem ao advogado de Lula, no julgamento desta semana — com a longa
explicação da ministra Cármen Lúcia para o fato de ter mudado de opinião, mesmo
dizendo que as mensagens captadas pelos hackers nada tinham a ver com isso.
Ao
falar sobre o episódio dos áudios, Mendes se mostrou indignado com a omissão,
na divulgação das gravações, de conversas em que o ex-presidente Lula se dizia
relutante em assumir a Casa Civil. “Alguém me diga que isso é normal?”,
questionou o ministro. “Alguém me diga que isso ficará sem consequências
jurídicas? E não preciso de hackers aqui, ministro Kassio. Não é preciso
invocar as lições de hackers aqui, mas os fatos. Os fatos. Sua excelência, o
fato.”
Mendes
tem razão. A escolha dos fatos que interessam para construir as narrativas que
convêm nos fez chegar até aqui.
A
eleição de 2018 mostrou que os brasileiros estavam mais suscetíveis a esse tipo
de narrativa do que se imaginava. Não seria exagero dizer que muita gente viu
em Bolsonaro a oportunidade de se agarrar a visões simplistas e parciais da
realidade, para não ter de lidar com os assuntos que incomodavam — como o
imperativo da tolerância e da diversidade de opiniões, credos e ideologias que
faz da democracia o melhor regime de convivência possível.
Contudo,
ao contrário do que possa parecer a alguns adoradores de mitos, a escolha dos
fatos que convêm não fará desaparecer da história a mentira e a crueldade que
nos governam em meio à tragédia. Assim como não fará sumir a corrupção do
passado e do presente.
Reescrever a história de forma conveniente pode ser um bom anestésico. Mas não vai nos dar a clareza e a maturidade que podem imunizar contra as mentiras dos novos e velhos falsos profetas.
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