As
300 mil vidas perdidas para a Covid-19 no país representam aproximadamente 23%
da média anual de mortes antes da pandemia. Grosso modo, de cada cinco mortos
no último ano, um estaria vivo não fosse o ambiente hospitaleiro que o vírus
encontrou entre nós. Viramos um assumido pária mundial, epicentro da Covid-19 e
ameaça sanitária ao planeta.
A história poderia ter sido outra? Certamente. O governo Jair Bolsonaro escreveu de próprio punho cada capítulo do roteiro macabro que nos impôs um luto sem data para terminar. Nada foi por acaso. Em 28 de março do ano passado, quando o país contava apenas 114 mortos pela Covid-19, o presidente foi alertado pelo então ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, para a gravidade da pandemia e seus efeitos devastadores. Na época, a pior projeção previa 180 mil mortos, caso não fossem tomadas as medidas necessárias. Àquela altura, era plenamente possível evitar o pior. Bolsonaro ignorou o alerta. Continuou agindo como sempre: desprezou máscaras, provocou aglomerações, atacou medidas de isolamento social decretadas por governadores e prefeitos, menosprezou a pandemia — era “só uma gripezinha” — e desdenhou as mortes que não paravam de crescer. Ressoa até hoje seu indiferente “e daí?” diante da tragédia.
No
pronunciamento em rede nacional na terça-feira, abafado por panelaços nas
capitais, tentou adotar um tom mais sóbrio. Mas continuou a mentir e a
distorcer dados para exaltar as ações do governo. “Quero tranquilizar o povo
brasileiro e afirmar que as vacinas estão garantidas”, afirmou. “Ao final do
ano, teremos alcançado mais de 500 milhões de doses para vacinar toda a
população. Muito em breve retomaremos nossa vida normal.” No mesmo dia, o
Ministério da Saúde anunciou a redução de quase dez milhões nas doses previstas
para abril, de 57,1 milhões para 47,3 milhões.
Em
dois meses de campanha, o país aplicou a primeira dose a pouco mais de 6% da
população. De acordo com os dados disponíveis até a última semana para 103
países na plataforma Our World in Data, esse percentual nos coloca na 54ª
posição no quesito “proporção da população que tomou ao menos uma dose da
vacina”. Nem de longe o que prega a propaganda bolsonarista, na tentativa de
eximir o presidente da responsabilidade pela condução desastrosa do combate à
pandemia.
Bolsonaro
trocou dois ministros da Saúde — os médicos Mandetta e Nelson Teich — pelo
general Eduardo Pazuello, cujo único predicado era obedecer-lhe na fixação em
adotar um remédio comprovadamente ineficaz contra a doença, a cloroquina. Não
tinha como dar certo. Acaba de assumir o quarto ministro na pandemia, o cardiologista
Marcelo Queiroga, apresentado ontem a sua primeira crise: o Ministério da Saúde
mudou os critérios para registro das mortes e, num passe de mágica, os números
despencaram. O governo só voltou atrás depois da grita dos estados.
No
Planalto, ainda se procura um cargo para Pazuello, investigado pela tragédia de
Manaus, onde pacientes morreram por falta de oxigênio. Os equívocos e as
omissões da dupla Bolsonaro & Pazuello ficaram explícitos na atitude diante
das vacinas. O governo fez tudo errado. Por omissão, viu-se refém do acordo
assinado pela Fiocruz para produzir a vacina da AstraZeneca. Desprezou a oferta
da Pfizer em agosto para comprá-la somente agora. Acordou tarde para outros
imunizantes. A vacina que sustenta o claudicante Programa Nacional de Imunização
é a chinesa CoronaVac, que Bolsonaro torpedeou por ter sido contratada por um
adversário, o governador João Doria.
O
resultado da gestão inepta é que faltam vacinas, enquanto o vírus e suas
variantes fazem a festa. O cenário é caótico. Hospitais entram em colapso,
doentes morrem nas filas de espera, faltam oxigênio e sedativos para entubar
pacientes, corpos se amontoam em corredores. A pandemia pode até acabar, mas as
sequelas durarão anos. Famílias perderam seus provedores, crianças ficaram órfãs,
pais e mães enterraram prematuramente seus filhos. Trezentas mil mortes —
muitas evitáveis — não podem ficar impunes. Quem será responsabilizado por
isso? É preciso que Ministério Público, comissões parlamentares e demais órgãos
de controle investiguem as responsabilidades de cada um nessa tragédia sem
precedentes.
Por
que não se seguiram as recomendações científicas? Por que não foram tomadas as
medidas de restrição sabidamente eficazes para conter o vírus? Por que não se
testou em massa a população, como fizeram os países que controlaram a epidemia?
Por que o Ministério da Saúde abriu mão de coordenar o combate à doença? Por
que se desperdiçaram dinheiro e energia com medicamentos inócuos? Por que não
foram compradas vacinas a tempo de imunizar a população e salvar centenas de
milhares de vidas?
Só ontem, depois de um ano e 300 mil mortes, Bolsonaro anunciou a criação de um comitê nacional para coordenar o combate ao vírus. Ficou claro no discurso do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), que a paciência até dos aliados com os erros está no fim. Que este momento, em que Bolsonaro passou a defender a vacinação e aparenta ter caído em si, marque enfim a guinada no combate à pandemia e a adesão a políticas embasadas na Ciência, para que não tenhamos mais de chorar milhares de mortos todo dia.
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